« (...) Apenas um provincianismo antipatriótico e uma prática de subserviência pode [esquecer] que a língua é quase o único domínio de independência que hoje nos resta, que é língua oficial de mais sete Estados e que é falada por mais de 200 milhões de pessoas em todos os continentes. (..)»
1. A par das liberdades culturais (arts. 37.º, 38.º, 42.º e 43.º) e dos direitos de acesso aos bens de cultura (arts. 73.º e segs.), pode falar-se, na (…) Constituição [portuguesa], de direitos à identidade cultural, desdobrados em três categorias:
• o direito à identidade cultural como componente ou expressão do direito à identidade pessoal ou, mesmo, do direito ao desenvolvimento da personalidade (art. 26º, n.º 1), pois a pertença a um povo com uma identidade cultural comum [art. 78.º, n.º 2, alínea c)] faz parte também da individualidade de cada pessoa;
• o direito de uso da língua, sabendo-se como a língua materna, por seu turno, é o primeiro ou um dos primeiros elementos distintivos da identidade cultural;
• o direito de defender, mesmo em tribunal, o património cultural [art. 52.º, n.º 3, alínea d)].
2. O relevo particularíssimo da língua resulta não só de o português ser declarado língua oficial (art. 11.º, n.º 3), mas também de constituir uma das «tarefas fundamentais do Estado» assegurar o ensino e a valorização permanentes, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa [art. 9.º, alínea f)].
E a isso acrescem os «laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa» [arts. 7.º, n.º 4 e 78.º, n.º 2, alínea d)] e a equiparação, em certos termos, dos direitos dos seus cidadãos aos direitos dos cidadãos portugueses (art. 15.º, nº 3), bem como o ensino da língua aos filhos de emigrantes [art. 74.º, n.º 2, alínea i)].
3. Serão, porém, cumpridas as obrigações constitucionais e respeitado o direito à identidade linguística dos cidadãos portugueses? A pergunta, infelizmente, justifica-se porque:
• Se tem admitido o registo de nascimento com nomes próprios não portugueses;
• Se espalham denominações de sociedades e cartazes publicitários em língua estrangeira;
• Se admitem primeiras denominações de escolas universitárias em língua estrangeira (até contra o disposto no art. 10.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Ensino Superior);
• Se impõe outra língua a alunos portugueses, em violação do seu direito fundamental à língua, em aulas ministradas por professores portugueses em escolas universitárias portuguesas (coisa diferente, claro está, será o caso de aulas dadas por professores estrangeiros);
• Muitas vezes, não se incentivam os alunos do programa Erasmus a aprender português, quando este programa, pelo contrário, visa a interculturalidade e não a uniformização linguística;
• Se observa o uso em público de línguas estrangeiras por titulares de órgãos de soberania nessa qualidade;
• Os sucessivos memorandos de entendimento com o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu não têm tradução oficial e não têm sido publicados no Diário da República;
• Se verifica a degradação do português como língua de trabalho na União Europeia.
Apenas um provincianismo antipatriótico e uma prática de subserviência pode explicar estes e outros factos, esquecendo-se que a língua é quase o único domínio de independência que hoje nos resta, que é língua oficial de [oito] Estados e que é falada por mais de 200 milhões de pessoas em todos os continentes.
4. O Acordo Ortográfico tem sido fortemente criticado por muitos especialistas e não especialistas da língua como atentatório do português.
Não vou discutir o assunto, até porque não sou especialista, embora não esconda a minha preferência por ele na medida em que possa contribuir para a afirmação internacional da língua portuguesa (que é uma só, apesar das variantes portuguesa, brasileira, africanas e asiáticas – não estamos numa situação semelhante à do latim aquando das invasões bárbaras).
Mas gostaria que aqueles que estão tão preocupados com a nova ortografia oficial, boa ou má, se manifestassem ainda mais inquietos com os problemas que acabo de lembrar.
Intervenção do professor universitário e constitucionalista Jorge Miranda, em texto transcrito, com a devida vénia, do jornal Público do dia 9 de fevereiro de 2013.