« (...) No domínio da linguística, que conheço melhor, tem-se publicado muito e bom material para o ensino universitário, mas, quando vamos além dos manuais de linguística do português, deparamo-nos com listas intermináveis de bibliografia em língua inglesa. E se é assim na línguística, imagino o panorama em outras áreas científicas. Além do mito da “anglofonite endémica”, esta situação é potenciada pelas políticas de avaliação dos docentes universitários, que favorecem a publicação em inglês em revistas ou editoras internacionais indexadas, em detrimento da produção de material destinado ao ensino ou à divulgação científica, situação nada surpreendente quando as universidades se vêm tornando cada vez mais instituições de captação de fundos para investigação e menos instituições de ensino superior. (...)»
No final dos anos 80 iniciei uma colaboração com o extinto Departamento de Língua e Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (rebatizado “Instituto de Cultura e Língua Portuguesa” após a jubilação de João Malaca Casteleiro), assegurando um “Seminário de Estudos de Léxico”, opcional para os estudantes de português como língua estrangeira do nível superior (C1 ou C2 atuais). Foi uma das experiências mais enriquecedoras do meu percurso académico.
Os temas centrais eram a neologia, i.e., a introdução de novas palavras no léxico, e os processos de formação de palavras em português. Embora tenham posteriormente captado o interesse de muitos investigadores, na altura poucas pessoas em Portugal se dedicavam a estes temas, sendo a bibliografia em português europeu inexistente. Aquela de que dispunha era maioritariamente escrita em francês, espanhol ou catalão. Como o francês era até então língua dominante no ensino básico e secundário e como o espanhol e o português escritos são muito parecidos, tive a absurda ilusão de que os meus alunos poderiam ler o que lhes recomendava. Claro que estava redondamente enganada. Alguns alegaram não conseguir ler nessas línguas e outros argumentaram, com razão, que estavam «a aprender português». Esta situação levou-me a começar a produzir algum material, i.e. vários conjuntos de fotocópias intitulados Notas soltas sobre..., que não só foi bem recebido pelos alunos, como foi policopiado e usado em várias escolas do país, como mais tarde descobri.
Desde então, o inglês foi substituindo o francês como língua estrangeira dominante e hoje os meninos começam mesmo a aprendê-lo curricularmente desde o 3.º ano de escolaridade, além de terem fácil acesso à língua através de quase todos os produtos de entretenimento. Esta situação gerou a ideia generalizada – tão absurda quanto a minha ilusão de há 30 anos – de que toda a gente com menos de 45 ou 50 anos em Portugal consegue pelo menos ler em inglês e compreender, o que está muito longe de ser verdade.
No domínio da linguística, que conheço melhor, tem-se publicado muito e bom material para o ensino universitário, mas, quando vamos além dos manuais de linguística do português, deparamo-nos com listas intermináveis de bibliografia em língua inglesa. E se é assim na línguística, imagino o panorama em outras áreas científicas. Além do mito da “anglofonite endémica”, esta situação é potenciada pelas políticas de avaliação dos docentes universitários, que favorecem a publicação em inglês em revistas ou editoras internacionais indexadas, em detrimento da produção de material destinado ao ensino ou à divulgação científica, situação nada surpreendente quando as universidades se vêm tornando cada vez mais instituições de captação de fundos para investigação e menos instituições de ensino superior. A pequena dimensão do mercado editorial português, incapaz de suportar os custos da edição original ou da tradução de obras de pequena tiragem, é mais um fator a adicionar a esta equação.
É certo que muitos jovens universitários portugueses têm um excelente desempenho na compreensão do inglês oral e escrito; porém, ainda existem muitos sem conhecimentos que lhes permitam aceder a conteúdos científicos mais elaborados. Não podemos, ainda, esquecer os tantos estudantes universitários estrangeiros a frequentar as nossas universidades, alguns provenientes de países de língua portuguesa, que não dominam a língua inglesa. Obrigá-los a aprender inglês (em vez de português) e/ou ensinar nessa língua será solução desejável? Será isso «a internacionalização do ensino superior português»?
Internacionalizar não é só anglicizar o saber. Internacionalizar tem que ser, também, prover o português, língua que se quer internacional, dos recursos (i.e. textos científicos) que lhe permitam ser efetivo veículo de ciência e conhecimento para os seus mais de 250 milhões de falantes.
Artigo publicado pela autora no Diário de Notícias de 28 de julho de 2020.