«A CPLP começou mal. Como as expectativas de cada um dos países que a integram eram diferentes, não havia uma visão e uma estratégia comuns.»
A comunidade de língua portuguesa continua com dificuldades em sair do papel. A maka é que ela sofre de um pecado original que precisa de ser superado por todos: a mesma não começou por ser pensada como uma comunidade de povos, mas como uma comunidade de governos. Ora, os governos não só têm interesses estratégicos próprios como obrigações decorrentes de outros compromissos internacionais, assumidos na decorrência desses interesses, e ainda não descobriram como essa comunidade pode contribuir para os realizar. Será a conciliação entre uns e outros realmente impossível?
A errância estratégica da CPLP é uma prova desse dilema. A verdade é que os países que a integram ainda não conseguiram definir o que priorizar de facto: a língua? A cultura? A economia? Enquanto isso, não conseguem sequer resolver o elementar: a circulação de pessoas e bens (a começar pelos culturais) entre eles. Quanto a solidariedade, alguém a viu, por exemplo, no atual momento pandémico?
A CPLP começou mal. Como as expectativas de cada um dos países que a integram eram diferentes, não havia uma visão e uma estratégia comuns. Portugal, país pequeno e sem peso económico para liderar a nova comunidade, pretendia usar a língua como instrumento para o efeito. A criação do Instituto Camões quando já existia o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, como órgão da CPLP, tornou explícita essa estratégia. Afinal, não é Portugal o "dono" da língua portuguesa? Errado. Os donos das línguas são os seus usuários e, hoje, os falantes mais numerosos do português são brasileiros e africanos. A estratégia portuguesa falhou, pois, à nascença.
Os países africanos encarregaram-se de enterrar de vez essa estratégia, ao puxarem o foco da CPLP para a cooperação económica. Óbvia e legitimamente, as necessidades de reconstrução de tais países explicam tal posicionamento. Mas há outro fator que tem de ser mencionado: alguns dos referidos países continuam relutantes em ultrapassar determinados tabus, como considerar a língua portuguesa uma língua "nacional", à semelhança das línguas de origem africana faladas nos seus territórios.
Em Angola, por exemplo, mais de 70% dos inquiridos no último censo (2014) declararam que o português é a sua principal língua. Se isso não significa, portanto, que a língua portuguesa já foi "nacionalizada" pelos angolanos (logo, é "nacional"), a Terra não gira à volta do Sol.
Quanto ao Brasil, a sua separação de Portugal acentuou-se no início do século XX, sobretudo com a imigração europeia (não portuguesa) então iniciada e com o processo de "americanização" da sua sociedade, em curso desde a II Guerra Mundial. As atuais elites dominantes brasileiras, salvo uma ou outra exceção, não veem mais Portugal como referência (alguns membros dessas elites poderão ver o antigo colonizador, quando muito, como porta de entrada na Europa). De igual modo, sendo profundamente eurocêntricas e "americanizadas", a sua atenção a África é também marginal. Daí o seu evidente desinteresse pela CPLP.
Como cidadão desta comunidade, seja lá o que isso for, defendo que a mesma deve ser uma comunidade "total", ou seja, ao mesmo tempo linguística, cultural, económica, diplomática, científica, tecnológica, em suma, multiforme. Acredito que uma comunidade que usa a sexta língua mais falada do mundo, possuidora de uma cultura diversificada e pujante, com três países produtores de petróleo e com recursos para dar o salto energético hoje reclamado pela humanidade, com capacidade de produzir alimentos à escala mundial, com um evidente potencial demográfico, em especial por causa dos países africanos, é uma comunidade viável.
O que falta nos nossos países são líderes com visão e estratégia. Parece que o problema é geral.
Artigo publicado no Diário de Notícias em 5 de outubro de 2021.