Joaquim Vieira, novo provedor do Público, debruça-se, nesta crónica*, sobre vários e permanentes erros de um jornal que já teve como imagem de marca a preocupação pelo bom uso da língua portuguesa. Uma acentuada degradação já antes assinalada, e não poucas vezes, pelo seu antecessor no cargo, Rui Araújo.
Não existe rosa sem espinhos nem jornal sem gralhas. Nem valerá a pena dramatizar a ocorrência de um ou outro desses acidentes (alguns identificados no blogue do provedor): prestar demasiada atenção à gralha ocasional é olhar para a árvore e não ver a floresta. O problema é que quando as gralhas abundam, e se repetem podendo ser evitadas, tornam-se elas próprias numa floresta. Uma floresta de enganos, que revela afinal desleixo na produção de um periódico.
O “Público” apostou de início num sector de revisão atento e exigente, mas a secção tem vindo a ser reduzida por razões de contenção de custos. A tal ponto que nem todos os textos são revistos, o mesmo sucedendo com a paginação e o conteúdo global de cada edição. Vejamos alguns casos recentes.
A 6 de Janeiro, o “Público” abria assim uma notícia na pg. 12: «Um dos feridos no incêndio ocorrido no último dia do ano num lar de idosos em Serpa morreu sexta-feira, elevando para quatro o número de vítimas mortais do sinistro». Mas na pg. 22 da mesma edição, encimando outra notícia aliás mais destacada, o leitor deparava com este título: «Subiu para cinco o número de mortos no incêndio ocorrido no lar de idosos de Serpa». Não só o mesmo evento foi noticiado em dois locais diferentes da mesma edição como a informação divergia num e noutro. Felizmente para os sobreviventes da tragédia, não houve, nas páginas subsequentes, novas notícias alargando ainda mais o número de vítimas mortais.
“Comculio”, em vez de conluio…
O título principal da pg. 6 da edição de 10 de Março era assim escrito, em discordância verbal: «Atrasos no hospital de Aveiro leva Estarreja a retomar protesto contra fecho de urgência». E cinco dias mais tarde lia-se este outro na pg. 20: «Brasil extradita para traficante para os EUA». O leitor Augusto Küttner de Magalhães, que protestou ao provedor pela preposição a mais, comentava: «Não se trata de detalhes e muito menos de andar à procura do erro, mas ‘má vista’ este género de títulos..., algo recorrente no”Público”!» Não será difícil, com efeito, encontrar outros títulos gralhados na leitura recente do jornal.
Palavras como “concluio” em vez de “conluio” (11 de Março, pg. 6), apesar de erro frequente de escrita (vá-se lá saber porquê), também não são desculpáveis no “Público”.
Mudando de tema: a notícia “Lei eleitoral autárquica vai a votos”, inserida a 20 de Março (quinta-feira última) na pg. 13, terminava assim: «Um mês depois, o PSD, já liderado por Luís Filipe Menezes, questionou o». Para o leitor, nada será mais irritante do que chegar ao fim de um texto e descobri-lo irremediavelmente cortado a meio de uma frase, que parte da notícia (pequena ou grande, não sabe) se perdeu algures no circuito informático e nunca chegou a encontrar o papel. Não seria grave ocorrido uma vez. Mas não é preciso recuar muito para encontrarmos idênticas situações nas páginas do”Público”, não se percebendo por que razão os responsáveis, logo após o primeiro caso, ainda não tomaram medidas para evitar a sua repetição.
Por vezes, os erros são toponímicos, como o referido pelo assinante José António Ribeiro da Cunha: «Não é primeira vez que detecto lapsos idênticos ao que vou referir. No “Público” de hoje [16 de Março, há oito dias], na 1.ª página, sob a fotografia do comício do PS no Porto, diz-se que o mesmo teve lugar no ‘pavilhão do Atlético do Porto’. Na pág. 3, há uma fotografia aérea da área, onde se assinala o ‘Pavilhão do Atlético do Porto’. Que eu saiba, no Porto não há nenhum clube com tal nome. Dir-se-á que é um pormenor sem grande importância, mas não poderei concordar, por três ordens de razões: 1 — há um clube, antigo, de grandes tradições, denominado ‘Académico’, onde decorreu o comício; 2 — o Porto não é, exactamente, uma vila perdida no interior do país, pelo que considero um desrespeito esta falta de rigor; 3 — seria de esperar que o “Público” não incorresse em tal lapso (...). Maior rigor, por favor.» O erro (ausente do texto da notícia) não foi corrigido posteriormente.
Outras vezes, a falha é de natureza histórica. No blogue do provedor, foi já publicada a denúncia de Paulo Almeida sobre a notícia "Ala do Museu do Prado reabre com Giordano" (P2, 22 de Fevereiro, pg. 14), que fala da «Ordem del Tóison, uma ordem de cavalaria criada para celebrar o casamento de Felipe II de Espanha com a portuguesa Isabel de Avis.» Vale porém a pena retomar a reacção do leitor: «Ninguém sabe no “Público” que a Ordem del Tóison é a Ordem do Tosão de Ouro? E que não foi fundada por Filipe II, mas sim por Filipe, o Bom, Duque de Borgonha e Conde de Flandres, para celebrar o seu casamento com Isabel de Portugal (filha de D. João I, Mestre de Avis)?»
A autora do texto admitiu o erro e pediu desculpas aos leitores. Mas deve dizer-se que hoje em dia, com ligação permanente à internet, os jornalistas possuem à distância de um clique a confirmação de dados factuais, eventos históricos, datas, números e grafia de nomes, pelo que não há explicação para a persistência de certos destes erros na imprensa. Na passada terça-feira (18 de Março), o “Público” anunciava na pg. 16 que «a língua alemã será ouvida hoje, pela primeira vez, no Parlamento de Israel, quando a chanceler Angela Merkel fizer um discurso que muitos descrevem como histórico», quando, afinal, os presidentes alemães Johannes Rau e Horst Köhler já o haviam feito (o jornal fez a correcção no dia seguinte, após alertado pelo provedor com base numa queixa do leitor Marco Bertolaso).
Outra dificuldade jornalística (quiçá relacionada com as médias dos estudantes portugueses a matemática, mas nem por isso justificável) consiste em lidar com números. Ainda na primeira pg. do “Público” de terça-feira, escreveu-se: «Os confrontos provocaram uma centena de feridos, entre os quais pelo menos 20 soldados franceses da Kfor, 63 polícias da UNMIK e 80 manifestantes”. Como diria António Guterres, basta fazer as contas. O blogue do provedor menciona casos ilustrativos, de errada conversão de euros para escudos ou de deficiente leitura de um orçamento de Estado com enganos da ordem dos mil milhões, assim como de confusão entre valores relativos e valores absolutos. Curiosamente, alguns desses erros são praticados por jornalistas da secção de Economia...
Ainda outro tema, decerto uma frustração para os leitores adeptos de jogos e desafios, conforme queixa recente de Jorge Rino: «Na edição de hoje (17 de Março), as grelhas das palavras cruzadas (P2, pg. 19) estão trocadas, e o mesmo aconteceu na edição de domingo. Se uma falha pode acontecer em qualquer jornal, nem numa ‘folha de couve das berças’ um erro é repetido em duas edições sucessivas».
… e a praga nas frases «um dos que»
E, agora, um desafio aos leitores: qual a formulação correcta do início da estrofe 81 do canto VIII de Os Lusíadas — «Era este Catual um dos que estavam corruptos pela Maumetana gente» ou «Era este Catual um dos que estava corrupto pela Maumetana gente»?
O provedor aposta singelo contra dobrado em como a maior parte dos jornalistas escreveria do segundo modo. Analisando porém os versos, vemos que, das duas orações existentes, o sujeito da primeira é o Catual e o da segunda o pronome relativo “que”, referido ao antecedente artigo definido “os” (contraído aqui com a preposição “de”). O que vincula o predicado da segunda oração à terceira pessoa do plural: «Era este Catual um dos que estavam corruptos pela Maumetana gente».
Sucede, na verdade, que se tem vindo a criar um terrível hábito, na língua portuguesa escrita e falada, de singularizar o sujeito da segunda oração em construções frásicas deste tipo. É uma praga espalhada tanto por jornalistas da imprensa, rádio e TV como por intervenientes e protagonistas noticiosos, desde figuras públicas a anónimos.
Vejamos o resultado de uma leitura superficial das mais recentes edições do”Público”, onde o vírus também foi inoculado: «Francisco José Viegas (...) é um dos autores portugueses que mais vende na ASA» (19/03, pg. 13); «É daqueles que nos faz perguntar (...)» (05/03, P2, pg. 34); «Brian achava que o seu amigo era um metrossexual, daqueles que gosta de roupas e cremes» (11/02, P2, pág 12); «Uma das actividades que tem estado no centro destas transformações (...)» (P2, 20/01, pg. 5); «Fassbinder, um dos realizadores que ‘leu’ Sirk e o ‘recuperou’ para as gerações que vieram depois» (Ípsilon, 18/01, pg. 54); «Mike Nichols, um dos raros cineastas americanos que (ainda) sabe como fazer comédia» (idem, pg. 55); «McCain é um dos que mais longe tem levado a dissidência» (13/1, P2, pg. 9); «Foi um dos naturalistas que mais contribuiu para o conhecimento dos territórios ultramarinos portugueses” (entrada de artigo, 08/01, P2, pg. 6); “O Porto foi um dos que registou diminuições mais acentuadas» (26/12, pg. 6); «Já atira um daqueles olhares que põe em sentido qualquer forasteiro» (08/12, pg. 24); «Um dos investigadores que esteve em contacto com este espólio» (06/12, P2, pg. 4).
Nem mesmo os cronistas escapam à epidemia: «Dos autores que li no curso de História, Joel Serrão foi dos que mais me impressionou» (Eduardo Cintra Torres, 15/03, P2, pg. 14); «Paul Feyerabend, talvez um dos filósofos do século XX que mais foi acusado de relativismo» (Rui Tavares, 20/01, pg. 36); «Um dos traços que se acentuou nesta década triste foi a infantilização cada vez maior do mundo dos adultos» (destaque do texto de José Pacheco Pereira de 05/01, pg. 37, sendo contudo a frase correctamente escrita – «Um dos traços que se acentuaram» — no corpo da crónica); «Nem eles, nem qualquer das luminárias que geriu a coisa entre 1999 e 2007» (Vasco Pulido Valente, 23/12, pg. 40).
O director, José Manuel Fernandes, escrevia na passada quinta-feira (pg. 8): «Um dos ícones da esquerda norte-americana que apoiou a guerra do Iraque».
Recomendação do provedor. Um jornal que aspira ser o principal diário de referência nacional, e que em editoriais sucessivos reclama para Portugal a aplicação dos mais elevados padrões de exigência, deve combater a displicência sujeitando toda a matéria a publicar a rigoroso processo de “copy-desk” e revisão.
in jornal Público de 23 de Março de 2008, sob o título original O Diabo está nos detalhes