Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Ouve-se cada vez mais a expressão "em específico" em vez de especificamente.

A sua utilização é correta em frases como «este assunto, em específico, foi tratado no programa anterior»?

Na verdade nem estou segura da pontuação, isto é, da sua colocação entre vírgulas...

Obrigada.

Resposta:

A palavra específico pode funcionar como adjetivo, incidindo diretamente sobre um nome com o sentido de “que revela particularização, individualização” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea):

(1) «Este livro específico vai ajudar no trabalho.»

Se o que se pretende é incidir sobre o verbo, a opção típica recai sobre o advérbio:

(2) «Ele falou especificamente sobre um assunto que me interessa.»

Não obstante, o adjetivo específico pode integrar uma locução de valor adverbial, introduzida pela preposição em. Esta preposição tem a particularidade de localizar um assunto num determinado domínio1, podendo incidir sobre toda a frase (3) ou sobre o grupo verbal (4):

(3) «Em geral/ Em particular, o vírus tem este comportamento.»

(4) «Falou em geral/em particular sobre o comportamento do vírus.»

Nestes contextos, afigura-se também lícito o uso da locução «em específico», embora não se trate de uma opção sentida como erudita. Na frase apresentada pela consulente, se a locução pretende incidir sobre o verbo a sua colocação mais natural deveria ser pós-verbal:

(5) «Este assunto foi tratado em específico / especificamente no programa anterior.»

Se o que se pretende é modificar o nome assunto, particularizando-o, então a preposição em não deverá ser usada:

(6) «Este assunto específico foi tratado no programa anterior.»

Pergunta:

Pergunta bastante simples. Nos nomes «Padre António Vieira» na linha 2 e «jesuíta» na linha 5, temos presente coesão lexical ou coesão gramatical referencial, ou correferência não anafórica?

«Mais do que um livro de pregação, que o próprio

não quis fazer, os Sermões do padre António Vieira

estão cheios de referências biográficas. A inveja e a ingratidão

da pátria, a defesa dos índios e dos judeus, a missionação

e a diplomacia exercidas pelo jesuíta do século XVII estão

presentes ao longo desta obra, que a partir de hoje terá

uma nova edição crítica a Sermão de Santo António

aos Peixes, Sermão do Bom Ladrão, Sermão da Sexagésima.»

Resposta:

As duas respostas estão corretas. São ambas possíveis porque resultam de abordagens específicas da textualidade.

Por um lado, a coesão é um fenómeno textual que compreende «Todos os processos de sequencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação linguística significativa entre elementos que ocorram na superfície textual» (Mateus, Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 89). A coesão divide-se em processos de coesão gramatical e de coesão lexical. Este último fenómeno está relacionado com a repetição da mesma expressão linguística no texto (coesão lexical por repetição) ou com a sua substituição por expressões que mantenham alguns traços idênticos ou opostos (coesão lexical por substituição).

Neste âmbito, entre os sintagmas «Padre António Vieira» e «o jesuíta» estabelece-se uma relação de coesão lexical por substituição, na medida em que a expressão linguística jesuíta mantém com «Padre António Vieira» uma relação de identificação de traços semânticos. O nosso conhecimento do mundo permite-nos saber que Pe. António Vieira foi jesuíta.

O fenómeno da correferência tem a ver com as relações que as palavras estabelecem entre si no texto relativamente às realidades que referem. Assim, em (1), teremos uma correferência anafórica entre o pronome ele e o sintagma «O João», uma vez que a referência do pronome ele se constrói pela relação que estabelece com um nome próprio com significado autónomo.

(1) «O João chegou. Ele está atrasado.»

No contexto escolar português, este fenómeno designa-se simplesmente anáfora e é um dos mecanismos de coesão referencial.

Em (2), t...

Foco e fogo
Covid-19 vs. incêndios florestais

Os focos de contágio do surto padémico  e os fogos florestais que marcaram o início do verão em Portugal motivam uma viagem à origem comum das palavras e ao seu desdobramento de sentidos, no apontamento de Carla Marques  difundido no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 28 de junho de 2020.

Pergunta:

A expressão «compor como» existe? E, se existir, significa «constituir» ou «corresponder a»?

Estas dúvidas surgiram-me ao falar com colegas da Região Autónoma da Madeira que usam constantemente esta expressão. Não sei se será algo regional.

Para contextualizar, uma das frases que os meus colegas escreveram foi:

«Tendo em conta o principal objetivo deste estudo, que é determinar qual dos índices se compõe como o melhor preditor da morte do recém-nascido, analisou-se a sensibilidade das várias escalas de gravidade neonatal.»

Muito obrigado.

Resposta:

A construção «compor como» não é, de facto, comum. No entanto, é possível usá-la com o sentido de «constituir», «formar», em situações como a frase (1):

(1) «A família compôs-se como um porto seguro.»

Uma pesquisa na Internet mostra alguns exemplos de uso desta construção sobretudo na  variante brasileira, o que se exemplifica em (2) e (3), embora também seja possível assinalar casos em português europeu (4) e (5):

(2) «[…] enquanto a literatura, em conjunto com a alfabetização, poderia se compor como forma de expressão para os alunos» (Rigotti (or.) Literatura infantil na alfabetização: o que, por quê?)

(3) ««Uma segunda hipótese leva-nos à leitura do texto em suas características fragmentárias que apontam para uma estrutura que se compõe como um conjunto de contos e, portanto, como uma obra ficcional» (Possebom, Infância de Graciliano Ramos: memória ou autobiografia?, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

(4) «Classificado como um dos melhores do mundo, o espetáculo pirotécnico deslumbra residentes e visitantes, com as suas cores vivas que iluminam o anfiteatro da baía e que se compõe como um postal inesquecível para quem assiste» ("Natal e Fim de Ano")

(5) «A própria definição do campo da sociologia da cultura contém possibilidades legítimas. Assumamos que se compõe como domínio disciplinar vasto [...]» (Casqueira,

Pergunta:

Na frase «ele se chama Fernando»,  a palavra se é partícula apassivadora ou pronome reflexivo?

A palavra se tem a função de objeto direto? A palavra Fernando é predicativo do objeto?

Agradeço.

Resposta:

Se considerarmos o verbo que chamar-se é reflexivo, com o sentido de «ter por nome», «ter sido batizado e/ou registado (com tal nome)», estaremos perante um verbo transitivo-predicativo. Neste caso, o pronome clítico se é complemento direto do verbo e Fernando predicativo do complemento direto.

Quanto à hipótese de estarmos perante uma oração passiva pronominal, semelhante à que se apresenta em (1), convém esclarecer que, nestas situações, o complemento direto da frase ativa surge com a função de sujeito e o complemento agente da passiva (que era o sujeito da ativa) fica implícito. Neste tipo de construção, cabe ao pronome se expressar o valor passivo.

(1) «Publicaram-se vários livros este ano.» / «Se publicaram vários livros este ano.»

Note-se, no entanto, que as orações passivas pronominais só ocorrem na 3.ª pessoa.1

Ora, de acordo com o que se preceitua atrás, a frase apresentada pelo consulente não constitui uma passiva pronominal porque o seu verbo pode flexionar em qualquer pessoa. Assim, sendo se não é um pronome com função apassivadora (Note-se, todavia, a posição de Bechara explicitada nesta resposta).

Não obstante, em termos semânticos, podemos perceber na frase um valor passivo, no sentido em que o nome foi atribuído por alguém.

Disponha sempre!