Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sempre ouvi desde pequeno que a frases «Não me toque em mim» está errada e que o certo ou é «Não me toque» ou «Não toque em mim», mas há pouco, estudando mais da nossa bela língua, me surgiu uma dúvida.

Napoleão Mendes de Almeida [na Gramática Metódica da Língua Português] fala de «reflexibilidade atenuada de ação» — algo assim, se não me engano — e usa como exemplo a frase «Ele se morre de tristeza».

Gostaria de saber se é a mesma coisa.

Resposta:

Relativamente à primeira parte da questão colocada, é importante saber que, neste caso, o verbo tocar é usado como transitivo indireto, ou seja, pede um complemento oblíquo (ou complemento relativo), regendo a preposição em, como em (1):

(1) «Ele tocou no livro.» (no = em + o)

A natureza do complemento oblíquo (complemento relativo) pode, todavia, determinar construções particulares. Como explicam Gonçalves e Raposo, «quando este complemento denota uma entidade humana, pode ser realizado por um pronome clítico dativo, o que o torna semelhante a um complemento indireto» (In Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1183).

Assim sendo, no que respeita às frases apresentadas, a construção típica é a que se apresenta em (2).

(2) «Não me toque.»

Não obstante, o sintagma preposicional pode ser substituído pelo pronome clítico me, como se observa em (3):

(3) «Não toque em mim.»1

Relativamente à construção apresentada em (4), poderemos considerá-la um caso de redobro do clítico, construção que, não sendo incorreta, é, neste caso, muito redundante:

(4) «Não me toque em mim.»

Relativamente à questão da reflexibilidade, Napoleão Mendes de Almeida explica que esta «faz com que o sujeito se torne, ao mesmo tempo, agente e recipiente da ação verbal» (

Pergunta:

Qual das seguintes frases é a mais correta?

«Cabe-nos respeitar a sua opinião», ou «Cabe a nós respeitarmos a sua opinião»?

Tanto numa frase como na outra o verbo respeitar está no infinitivo pessoal, e gostaria de saber o porquê.

Resposta:

O verbo cabepode ser intransitivo ou transitivo indiretotransitivo. Este último uso está ilustrado em (1), frase em que o verbo se constrói com complemento indireto («aos alunos»):

(1) «Cabe aos alunos estudar.»

Neste caso, é possível pronominalizar o argumento do verbo, o que acontece em (1a):

(1a) «Cabe-lhes estudar.»

O pronome lhes desempenha a mesma função que o constituinte «aos alunos»: ambos são complemento indireto do verbo caber.

Note-se que, do ponto de vista normativo, a pronominalização do complemento indireto é feita por meio de um pronome clítico e não por um pronome forte. Pode, no entanto, acontecer que, por razões de focalização informacional se pretenda colocar em destaque o pronome. Como os clíticos são formas fracas, sem acento tónico, a língua dispõe de uma estrutura em que «um pronome tónico duplica, ou “redobra” o clítico (de forma a colmatar, para um fim particular, a sua natureza “fraca”, ou “deficiente”.» (Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2237) A frase (2) ilustra esta estrutura:

Consciência e desobediência
De Padre António Vieira a Aristides de Sousa Mendes

Consciência e desobediência são as palavras nucleares da crónica de Carla Marques  difundida no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 21 de junho de 2020, recordando a ação de homens como o Padre  António Vieira e o diplomata  Aristides de Sousa Mendes

 

Imagem: O Pensador, de Auguste Rodin, 1904. 

Pergunta:

Gostaria de entender o processo de construção da frase «não estou confiante "se ela está boa"».

Entendo que teríamos de escrever «não estou confiante de que ["que" ou "em que"] ela esteja boa» por causa da regência nominal de confiante. Porém, venho escutando a primeira com certa incidência.

Poderia pensar que a força da oração hipotética («se ela está boa») quebra a oração subordinada substantiva completiva nominal? Haveria alguma explicação gramatical ou linguística para tal fenômeno?

Obrigado!

Resposta:

A construção apresentada, do ponto de vista da norma, não está correta. A opção correta é a que se apresenta em (1):

(1) «Estou confiante (em) que ela está/esteja boa.»

A frase apresentada integra uma oração completiva selecionada pelo adjetivo confiante. As orações completivas de adjetivo são tipicamente introduzidas por uma preposição. Neste caso particular, o adjetivo confiante rege habitualmente a preposição em, quer introduza um sintagma nominal quer uma oração subordinada:

(2) «Estou confiante no sucesso do João.»

(3) «Estou confiante em que o João tenha sucesso.»

Todavia, a preposição em pode, em certas ocasiões, ser omitida na introdução de orações subordinadas, como acontece em (4):

(4) «Estou confiante que o João tenha sucesso.»

Já o complementador se é usado para introduzir orações interrogativas indiretas. Bechara, que o classifica como transpositor, afirma: « a) Se [que] transpõe oração originariamente interrogativa total, isto é, desprovida de unidade interrogativa, ao nível de substantivo, conhecida, por isso mesmo, como conjunção integrante […] Ela não sabe [se terá sido aprovada]» (Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 271). O complementador se tem, portanto, a função de transpor a oração interrogativa independente para a dependência do verbo, passando, neste caso, a ser seu complemento direto:

(5) «Não sei se o João terá sucesso.»

Atendendo ao que ficou dito, na frase apresentada pelo consulen...

Pergunta:

Devo dizer «os nossos esforços hão-de* resultar», em vez de «haverão de resultar», certo?

Mas não compreendo em que situações devo usar a forma haverão.

 

N.E. O consulente segue a norma anterior ao Acordo Ortográfico 90 na grafia da palavra.

Resposta:

Os valores expressos pela perífrase verbal «haver de + infinitivo» constroem-se sobretudo através da flexão do verbo auxiliar no presente ou no imperfeito do indicativo. 

Assim, com haver flexionado no presente do indicativo, o complexo verbal «haver de + infinitivo» expressa um valor de futuridade e associa-se «a um tempo futuro indeterminado e tem uma forte componente modal, em que se expressa um desejo, uma intenção ou um compromisso»1:

(1) «Os bons tempos hão de voltar.»

(2) «Eu hei de acabar o trabalho a tempo.»

O auxiliar haver usa-se também no imperfeito do indicativo, construindo com o verbo principal uma perífrase que expressa um valor de ordem (atenuada), de um pedido ou de uma sugestão:

(3) «Havias de ir ao banco.»

(4) «Havias de começar a estudar.»

A opção pela flexão do auxiliar no futuro expressa também um valor de futuridade, sentido eventualmente como mais literário. Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que não se trata de uma construção frequente, mas é possível assinalar alguns exemplos na literatura:

(5) «Hoje, a mínima espórtula glandular, que os olhos haverão de pagar ao amor sincero [...]» (Fialho de Almeida, Os Gatos II

(6) «Não a olha de frente, já que se teme das feições ...