Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A expressão "A obra fala sobre...", "O livro fala sobre", "O texto fala de" existem/estão corretas ou não na língua portuguesa?

Resposta:

As expressões apresentadas estão corretas.

O verbo falar é usado denotativamente com o sentido de “articular, um ser humano, sons com a voz, formando palavras” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea), como acontece em (1):

(1) «O João falou com os amigos durante toda a tarde.»

Não obstante, este verbo pode também ter o sentido de “ter como assunto, como tema”, situação em que é equivalente a tratar. É com este sentido que o verbo é usado nas expressões assinaladas pelo consulente.

Relativamente à regência do verbo falar, alguns gramáticos mais normativos consideravam que a construção com a preposição sobre era um galicismo. Todavia, nos usos correntes, são aceitáveis as duas regências: com a preposição de e com sobre.

Refira-se, por fim, que as construções indicadas pelo consulente são identificáveis em vários contextos, como é possível verificar por meio de uma pesquisa na internet:

(2) «A obra fala sobre a relação entre Telémaco, filho de Ulisses, e Mentor, seu preceptor.» (Mareschachi, A História e as histórias de Cosimo. Dissertação de mestrado)

(3) «A obra fala sobre preconceito, estratégias e a forma como as gordas são vistas pela sociedade atual.» (Revista Caras, 8 de novembro de 2014)

(4) «[…] a obra fala de dieta e conta também com receitas e imagens dos pratos confeccionados.» (

Pergunta:

É comum observar-se a expressão "Se ocorre P, então ocorre Q", tanto na linguagem coloquial quanto em contexto técnico.

Neste caso, ocorrem-me duas possíveis classificações, que parecem ser, em princípio, conflitantes.

1) A oração «Se ocorre P» é subordinada adverbial condicional, e a oração «então ocorre Q» é a oração principal, em que «então» desempenha função de advérbio. Observa-se que a omissão ou troca de "então" não resulta em qualquer diferença nas sentenças.

2) A oração «Se ocorre P» não parece assumir o papel de oração coordenada sindética. Contudo, é possível omitir-se a partícula se e manter-se a sentença «Ocorre P, então ocorre Q», de sorte que ocorram duas orações coordenadas, sendo a segunda uma oração sindética conclusiva.

Parece-me razoável concluir que a ocorrência de se na primeira oração implica a classificação obtida em (1), dado que não é possível atribuir a se outro valor morfológico senão o valor de conjunção.

Gostaria, por gentileza, de vossa opinião a respeito do assunto.

Grato.

Resposta:

A expressão «Se P, então Q» é usada na lógica proposicional e expressa uma implicação segundo a qual a primeira proposição (o antecedente) só será falsa se a segunda (o consequente) também o for.

Numa construção condicional típica, existe entre as duas orações uma relação de dependência sintático-semântica, pelo que consideramos que não estamos perante um caso de coordenação. A tradicionalmente designada oração subordinada adverbial condicional corresponde ao antecedente, cujo conteúdo depende semanticamente do consequente, ou seja, da oração subordinante.

A estrutura típica destas construções é composta por duas orações: uma introduzida por se, que introduz a condição, e outra introduzida por então, que marca a consequência. Visto que introduzem duas orações, estabelecendo entre elas uma relação, poderemos considerar que, neste caso, se…então são conjunções correlativas1 (como acontece com ou… ou, por exemplo).

No uso corrente da língua, é natural a omissão de alguns elementos da construção condicional, como se observa na relação entre (1), (2), (3) e (4):

(1) «Se chover, então fico em casa.»

(2) «Se chove, fico em casa.»

(3) «Chove, então fico em casa.»

(4) «Chove, fico em casa.»

Tal é possível porque a construção condicional é reconstruída por inferência.

A frase apresentada em (4), do ponto de vista sintático, é constituída por duas orações que não são introduzidas por conjunções, mantendo uma relação próxima da parataxe2, que, não obstante, do ponto de vista semântico, expressa uma relação de depend...

Pergunta:

Encontrei a frase «Duvido que o Zé fosse capaz de fazer uma coisa dessas» nas soluções dum livro de exercícios de Português para estrangeiros.

Embora as regras da consecutio temporum indiquem que a subordinada deveria levar o conjuntivo presente «Duvido que o Zé seja capaz de fazer uma coisa dessas», ao mesmo tempo, parece-me correta a utilização do imperfeito, com o fim de atribuir à oração uma perspetiva presente de um momento no passado: duvido (agora) que o Zé fosse capaz (no passado)...

Por outro lado, poderíamos utilizar o pretérito-mais-que-perfeito do conjuntivo: «Duvido que o Zé tenha sido capaz de fazer uma coisa dessas»?

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

 

Embora a consecutio temporum, ou seja, a correlação temporal, assente nalguma rigidez na combinação dos tempos verbais, o que é verdade é que os usos mostram uma realidade diferente, que aponta para a possibilidade de diversidade de combinações de tempos verbais. A seleção do tempo verbal da oração subordinada, no caso apresentado, vai ter consequências na localização temporal da situação descrita1.

 

(i) quando o verbo da oração subordinada vai para o presente2, este indica uma situação que ocorrerá num tempo posterior ao momento da enunciação (ocorrendo num intervalo de tempo próximo ou mais distante). Na frase (1), refere-se algo que o Zé poderia vir a fazer (apresentado como incerto):

(1) «Duvido que o Zé seja capaz de fazer uma coisa dessas.»3

(ii) o verbo no imperfeito do conjuntivo deixa em aberto a localização temporal da situação descrita, pois tanto pode referir uma situação anterior ao momento da enunciação (2) como posterior (3):

(2) «Duvido que (ontem) o Zé fosse capaz de fazer uma coisa dessas.»

(3) «Duvido que (depois disto) o Zé fosse capaz de fazer uma coisa dessas.»

(iii) com o verbo no pretérito perfeito do conjuntivo, refere-se uma situação passada e concluída (ainda que hipotética):

                (4) «Duvido que...

Pergunta:

Numa das últimas respostas do consultório encontrei a seguinte expressão: «Ao cortarem-lhe as tranças, eles deixaram a menina muito triste.». Pergunto, uma vez que o sujeito das duas orações é o mesmo, se não poderá escrever-se também:«Ao cortar-lhe as tranças, eles deixaram a menina muito triste.» Antecipadamente grato

Resposta:

As duas opções são aceitáveis, embora o recurso ao infinitivo flexionado seja considerado mais adequado.

Com efeito, as orações introduzidas por ao constroem-se habitualmente com infinitivo flexionado, como se verifica nas frases seguintes, nas quais o sujeito das duas orações é o mesmo:

(1) «Ao cortares-lhe as tranças, (tu) deixaste a menina muito triste.»

(2) «Ao cortarmos-lhe as tranças, (nós) deixámos a menina muito triste.»

(3) «Ao cortarem-lhe as tranças, (eles) deixaram a menina muito triste.»

O mesmo se verifica, como é evidente, quando o sujeito das duas orações é diferente:

(4) «Ao chegares, a menina ficou feliz.»

(5) «Ao chegarmos, a menina ficou feliz.»

(6) «Ao chegarem os amigos, a menina ficou feliz.»1

Em alguns casos em que o sujeito das orações é o mesmo, alguns falantes aceitam o infinitivo não flexionado:

(7) «Ao cortar-lhe as tranças, eles deixaram a menina muito triste.»

Disponha sempre!

1. Note-se que nos casos em que o sujeito 

Pergunta:

Desconsiderando a substituição do futuro do pretérito simples do indicativo pelo pretérito imperfeito do indicativo em condicionais, que os lusofalantes fazem, gostaria de saber a diferença de significação entre:

(1) «Se ele não tivesse roubado isso, nós teríamos fugido.»

(2) «Se ele não roubasse isso, nós fugiríamos.»

Não consigo identificar a distinção de condicional contrafatual quando formada pelo (1) pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo + futuro do pretérito composto do indicativo e pelo (2) pretérito imperfeito do subjuntivo + futuro do pretérito simples do indicativo. E ainda, não sei se é possível combinar as formas supracitadas e quais seriam os novos significados, como em:

(3) «Se ele não tivesse roubado isso, nós ganharíamos»;

(4) «Se ele não roubasse isso, nós teríamos ganhado».

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Tipicamente, considera-se a existência de três tipos construções condicionais, que estão relacionadas com três tipos de interpretações da factualidade da condição expressa na oração subordinada. As diferentes interpretações constroem-se recorrendo a diferentes modos e tempos verbais na oração subordinada. Assim, distinguimos:

(i) construções condicionais factuais, que recorrem ao modo indicativo, apresentando factos dados como reais:

   (1) «Se ele pede ajuda, eu vou a casa dele.»

(ii) construções condicionais hipotéticas, que se estruturam com o imperfeito ou futuro do conjuntivo, expressando uma situação que poderá ou não ter lugar, ou seja, que é dada como possibilidade:

   (2) «Se ele pedisse ajuda, eu iria a casa dele.»

   (3) «Se ele pedir ajuda, eu irei a casa dele.»

(iii) construções condicionais contrafactuais, que se constroem, normalmente, com o pretérito mais-que-perfeito do conjuntivo ou com o imperfeito do conjuntivo:

   (4) «Se ele tivesse pedido ajuda, eu teria ido a casa dele.»

   (5) «Se ele pedisse ajuda, eu teria ido a casa dele.»

Como se pode observar pelo que ficou dito anteriormente, os diferentes valores das orações condicionais também estão dependentes do modo e tempo verbal da oração subordinante, sendo possíveis diferentes combinações. ...