Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Que advérbios de tempo é que podem ser usados com a perífrase «ter vindo a» mais infinitivo? Os que indicam tempo passado ou presente?

Pode usar-se atualmente com a mesma locução, como em: «Atualmente tem vindo a dar-se esse fenómeno»? Pode essa perífrase denotar o mesmo que um verbo finito acompanhado da preposição a seguida dum infinitivo, sendo equivalente a «Atualmente está a dar-se esse fenómeno»?

Obrigado

Resposta:

A locução «ter vindo a» incide sobre o verbo principal com um valor aspetual que expressa tipicamente uma  ideia de continuidade, a que acresce um valor iterativo (de repetição)1. Assim, em (1) focaliza-se uma situação não concluída, constituída por um conjunto de situações pontuais que, no seu conjunto, expressam a ideia de prolongamento no tempo:

(1) «O João tem vindo a colaborar com o jornal da escola.»

Atendendo a estes valores aspetuais, esta construção pode combinar-se com constituintes adverbiais de localização temporal que:

(i) incidam sobre o intervalo de tempo anterior ao momento de enunciação, no qual a situação descrita teve início:

(2) «Desde a semana passada, o João tem vindo a colaborar com o jornal da escola.»

(3) «Desde a semana passada, tem vindo a dar-se esse fenómeno.»

(ii) incidam sobre a situação no seu decurso:

(4) «Atualmente / No momento presente, o João tem vindo a colaborar com o jornal da escola.»

(5) «Atualmente / No momento presente, tem vindo a dar-se esse fenómeno.»

(iv) focalizem a própria duração:

(6) «Durante esta semana, o João tem vindo a colaborar com o jornal da escola.»

(7) «Durante esta semana, tem vindo a dar-se esse fenómeno.»

(v) focalizem a frequência da ocorrência (incidindo sobre o valor iterativo, de repetição da situação):

Estamos uberizados!
As palavras a espelhar a realidade ... antes e pós-covid-19

Os termos uberização e uberizar entraram no léxico português e começam a alargar os seus significados, correspondendo a uma forma de dizer realidades sociológicas novas que se estão a desenvolver, inclusive no contexto da pandemia de covid-19.

Pergunta:

A frase «eu sou o pão vivo, que desci do céu» [João 6, 51] soa-me sempre mal, mas fico na dúvida se em português é possível fazer esta construção ou se, pelo contrário, seria obrigatório que o verbo da oração relativa ficasse na terceira pessoa, concordando com o antecedente do relativo – «o pão vivo».

Fico com a ideia de que em latim, por exemplo, esta frase não resultaria problemática porque o que declinado indicaria a sua relação com o eu da oração subordinante, equivalendo a «eu, que desci do céu, sou o pão vivo», sendo então esta a única formulação em português que se poderia aceitar como correcta, obrigando a que o relativo esteja mesmo sempre a seguir ao seu antecedente.

É assim?

 

N. E. (07/04/2020) – Manteve-se a forma correcta, que é da norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

Resposta:

Com efeito, em latim, a frase do Evangelho segundo S. João é «Ego sum panis vivus, qui de caelo descendi»1. Nesta frase, o pronome relativo toma como antecedente o pronome pessoal ego, o que se confirma pela flexão verbal na primeira pessoa do singular (descendi).

Na tradução da frase para português, devem manter-se as mesmas relações sintáticas, ou seja, o pronome relativo que deve ter como antecedente o pronome pessoal eu, o que significa que o verbo deve flexionar na primeira pessoa do singular (desci).

Na frase que obtemos em português contemporâneo, coloca-se, no entanto, a questão da gramaticalidade do afastamento da oração relativa do seu antecedente. Tipicamente, a oração relativa coloca-se em adjacência ao seu antecedente, não havendo lugar à introdução de constituintes entre o nome antecedente e a oração relativa2. Por esta razão, é possível que uma frase como (1) seja sentida como mais natural pelos falantes:

(1) «Eu, que desci dos céus, sou o pão vivo.»

No entanto, em particular com construções copulativas, o afastamento da oração relativa é um processo sintático que pode ter lugar quando esta tem como antecedente o sujeito da frase:

(2) «Eu sou o primeiro que sei esta canção.»

Pergunta:

Gostava de saber se a construção «Um bom amigo deve ser uma pessoa com que puderes partilhar o tempo e passá-lo bem» é correta e se poderia ser igualmente válida com presente de conjuntivo («com a que possas partilhar o tempo»)

E qual seria a explicação da razão de usar uma ou outra?

Obrigadíssima e parabéns pelo trabalho.

Resposta:

A frase mais aceitável é a que opta pelo presente no conjuntivo na oração relativa. Note-se ainda que nos casos em que a oração relativa é introduzida por um constituinte preposicionado e tem um antecedente com o traço [+humano], alguns falantes preferem recorrer ao uso do relativo quem, que é semanticamente mais rico:

(1) «Um bom amigo deve ser uma pessoa com quem possas partilhar o tempo e passá-lo bem.»

Nesta situação, pode também optar-se pelo uso da locução o qual:

(2) «Um bom amigo deve ser uma pessoa com a qual possas partilhar o tempo e passá-lo bem.»

Relativamente à seleção do modo conjuntivo, diga-se que esta ocorre em orações relativas (apenas as de tipo restritivo) que têm uma leitura não específica, ou seja, que referem entidades cuja existência não é dada como real ou cuja identificação não é processada. Repara-se que, na frase apresentada, este contexto não específico é criado pelo verbo dever (da oração subordinante).

Quanto aos tempos verbais, o uso do presente do conjuntivo permite produzir uma afirmação de valor genérico e não específico, o que também se deve ao uso do artigo indefinido uma. Por sua vez, o futuro está associado, preferencialmente, a situações que se projetam para além do momento de enunciação, o que introduz alguma estranheza na frase apresentada, visto tratar-se de um enunciado de valor atemporal, isto é, aplicável a qualquer situação, semelhante a uma máxima.

Não obstante, seria possível o uso do futuro do conjuntivo numa situação como (4...

Pergunta:

Como sabemos, os advérbios 'nunca' e 'jamais' pertencem, agora, aos advérbios de tempo. Será que podemos dar como exemplos de frases com polaridade negativa aquelas que incluem estes dois advérbios? Como explicar aos alunos que é uma frase com polaridade negativa, se não está presente um advérbio de negação? Não vejo, nos projetos editoriais, esta questão muito clara! Muito obrigada.

Resposta:

 

A polaridade negativa é descrita no Dicionário Terminológico como o «Valor afirmativo ou negativo de um enunciado». Acrescenta-se ainda que «A polaridade negativa pode ser expressa através do advérbio de negação ou de outras palavras ou expressões com valor negativo».

Assim sendo, há determinadas palavras que têm a capacidade de alterar a polaridade das frases. Neste âmbito, não, sem e nem são considerados os marcadores de negação fundamentais1. Como se pode observar, estes marcadores são, respetivamente, um advérbio de negação, uma preposição e uma conjunção, o que significa que palavras pertencentes a diferentes classes podem determinar a polaridade negativa de uma frase. O mesmo acontece a nunca e jamais, que, de acordo, com os documentos oficiais2 que estruturam o ensino do Português em Portugal, deverão ser classificados como advérbios de tempo, classificação que integra uma visão tradicional e de âmbito semântico.

Como afirma Matos, «Usualmente, as unidades que expressam a negação têm polaridade negativa inerente, ou seja, por si sós veiculam o sentido negativo da expressão linguística a que se aplicam». (in Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 780).

(ver também os Textos Relacionados)

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