Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na expressão «os meus poemas na fase inicial /pelo écran» (in Técnica vs. Artesanato de Ana Luísa Amaral), o adjetivo inicial é modificador restritivo do nome ou complemento do nome?

Por um lado, não parece ser nenhuma das situações em que se concretiza o uso do complemento do nome mas, por outro lado, parece que a frase fica incompreensível se se suprimir inicial.

Agradeço antecipadamente o vosso esclarecimento.

Resposta:

O adjetivo inicial desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo, incidindo sobre o nome fase.

Inicial é um adjetivo relacional que estabelece com o nome uma relação de delimitação temporal, que leva a que o sintagma nominal seja assim interpretado como «fase que se encontra no seu início». Deste modo, o adjetivo atribui ao nome uma propriedade que não lhe é intrínseca. 

Estes adjetivos têm a função de classificar os nomes em subtipos. Com efeito, poderemos determinar tanto uma «fase inicial» como uma «fase final», por exemplo. Por esta razão, a sua omissão no contexto em que é apresentado referencia outra realidade (de outro tipo), o que poderia inclusive exigir alteração sintática da frase:

(1) «os meus poemas nesta fase» (por exemplo)

É também característica desta combinação entre o nome e o adjetivo relacional a criação de unidades lexicais com um forte grau de coesão entre as duas palavras, que designam um corte de realidade específico.

Este mesmo grau de coesão verifica-se em sintagmas nominais como «pesca fluvial» ou «banda desenhada», por exemplo.

Relativamente à função complemento de nome, recorde-se que a presença/ausência do constituinte não é critério de identificação, pois ele pode ser sempre omitido. Por outro lado, esta função é desempenhada tipicamente por sintagmas pr...

Pergunta:

Qual destas possibilidades está certa? Encontrei as duas possibilidades, fiquei na dúvida sobre qual das duas possibilidades corresponde ao Português Europeu. No caso da primeira também ser possível em PE, a possibilidade decorre da presença do conetor ou de mecanismos enfáticos ou outra possibilidade, claro. Obrigado 'Ao lhe cortarem as tranças, a menina ficou muito triste' ou 'Ao cortarem-lhe as tranças, a menina ficou muito triste'.

Resposta:

Numa perspetiva mais normativa, a frase apresentada tem uma aceitabilidade duvidosa. Tal acontece porque as orações com «ao + infinitivo» apresentam algumas restrições quanto ao seu sujeito, que normalmente não aparece expresso porque se identifica referencialmente com o sujeito da oração subordinante1. Ora, uma vez que as duas orações têm sujeitos distintos (um sujeito nulo interpretado como eles e «a menina»), a frase parece apresentar uma anomalia semântica. Nesta ótica, esta poderá ser corrigida com a manutenção do mesmo sujeito nas duas orações, como acontece em (1):

(1) «Ao cortarem-lhe as tranças, eles deixaram a menina muito triste.»

No que respeita à colocação do pronome clítico, nos casos em que a oração infinitiva é introduzida pela preposição a (neste caso, contraída com o artigo o), a posição do pronome é enclítica, ou seja, este coloca-se depois do verbo, tal como se verifica em (1)2.

Disponha sempre! 

 

1. Cf. Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1998.

2. cf. Martins in Idem, ibidem, pp. 2285 – 2287.

Pergunta:

Na frase «ajudei-o a que fizesse as malas», a completiva finita oblíqua pode ser substituída pelo pronome isso?

«Ajudei-o a isso.» Está correta essa frase?

Tradicionalmente a completiva finita oblíqua em causa se chama oração subordinada substantiva objetiva indireta?

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada, a oração subordinada substantiva completiva «a que fizesse as malas» pode ser substituída pelo pronome demonstrativo isso, pelo que está correta a frase (1):

(1) «Ajudei-o a isso.»

Esta oração desempenha, na frase onde se insere, a função de complemento oblíquo1.

Note-se que o complemento oblíquo do verbo ajudar pode também ser introduzido pela preposição em, como acontece em (2).

(2) «Ajudei o João em seu estudo.»

Neste caso, o constituinte «em seu estudo» será subsituível pelo constituinte «nisso»:

(3) «Ajudei o João nisso.»

Quanto à designação da oração, seguindo a proposta de Bechara, esta é uma oração subordinada substantiva objetiva indireta2.

Disponha sempre! 

 

1. Esta função corresponde ao complemento relativo, na terminologia usada, por exemplo, por Evanildo Bechara (cf. Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, p. 346).

2. Também em Cunha e Cintra encontramos a mesma designação (cf. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 596).

Pergunta:

No decassílabo «E cava, em belas frontes, paralelas» (tradução pessoal de um verso de Shakespeare)*, as vírgulas são ou não desejáveis?

Pergunto isto, porque não sei se o uso da vírgula impede a sílaba métrica |va em|, e também porque não tenho a certeza se, de um ponto de vista gramatical, elas são realmente necessárias. A minha intenção é apenas impedir que a palavra paralelas possa ser considerada um adjetivo referente a frontes.

Obrigado.

 

N. E. – Trata-se de um dos versos do soneto 60 de William Shakespeare (1564-1616): «And delves the parallels in beauty's brow».

Resposta:

 O uso da vírgula no verso não impede a constituição de uma sílaba métrica. A título de exemplo, recorde-se a análise em sílabas métricas do primeiro verso soneto de Camões proposta por Amorim de Carvalho no seu Tratado de versificação portuguesa, onde se prevê a sinalefa em /nha a/, independentemente de existir uma vírgula entre as duas vogais:

(1) «De quantas graças tinha, a Natureza» (cf. esta resposta)

Relativamente à correção do uso das vírgulas propostas, nada indica que estas sejam incorretas, uma vez que parecem ter sobretudo um efeito estilístico que realça o constituinte. Por outro lado, visto que é indesejável que o adjetivo paralelas seja associado a frontes, o que acontecerá na ausência de vírgula, este sinal de pontuação será mesmo necessário como auxiliar de interpretação do sentido da frase.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

«A história da dança tem sido escrita há séculos».

Esta frase está correta?

Tenho dúvidas porque, por um lado, pode ter um significado de duração (ex: trabalho nesta empresa há oito anos), mas, por outro, nesta frase, parece-me que remete para uma localização temporal no passado, com o sentido de «foi escrita há séculos». «A história da dança tem sido escrita ao longo de séculos» soa-me melhor, mas não posso afirmar que a outra esteja incorreta. Gostaria que esclarecessem esta questão, por favor.

Obrigada pelo vosso trabalho.

Resposta:

A frase apresentada não é aceitável por apresentar problemas no plano da semântica temporal.

A questão colocada exige a análise de dois aspetos distintos: o valor temporal expresso pelo complexo verbal «tem sido escrita» e o valor temporal da construção de valor temporal com o verbo haver.

O complexo verbal «tem sido escrita» encontra-se no pretérito perfeito composto da forma passiva. Do ponto de vista aspetual, este tempo veicula um valor aspetual imperfetivo (de ação ainda não concluída) e iterativo (representa situações que se repetem múltiplas vezes). Para além destes valores, descreve ainda um intervalo temporal que teve início antes do momento de enunciação, não tendo, todavia, um limite final definido (este projeta-se algures no futuro).

Por sua vez, o verbo haver surge numa construção temporal com um valor de duração1. Esta construção identifica um intervalo temporal localizado a partir do momento de enunciação e que se projeta no passado. Por essa razão, esta construção combina-se de forma natural com estados (1) ou atividades (2), que não têm uma delimitação temporal, localizando-as temporalmente:

(1) «Ele é simpático há anos.»

(2) «Ele mora no Porto há dois anos.»

Por exemplo, no caso da frase (2), a localização feita pela expressão «há dois anos» expressa a duração da atividade «morar no Porto», que corresponde a um intervalo de dois anos a contar do momento de enunciação para trás.

Ora, no caso da frase apresentada, os valores do complexo verbal e da construção co...