Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
46K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como faço para diferenciar a palavra então de advérbio e conjunção (principalmente conclusiva)?

Grato.

Resposta:

Tradicionalmente, então é considerado um advérbio de tempo (cf. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 549). Neste caso, então incide sobre o grupo verbal, estabelecendo um intervalo temporal para a situação descrita:

(1) «O João chegou a casa. Preparou-se, então, para dormir uma sesta.»

Enquanto advérbio de tempo, então tem também uma função de anáfora textual, uma vez que retoma o intervalo de tempo construído na situação anterior («chegar a casa»), definindo-a como ponto de partida para o desenvolvimento da situação seguinte («dormir uma sesta»). Neste caso, então não é uma conjunção porque não tem a função de relacionar duas orações.

Então pode ser usado com uma função semelhante à de uma conjunção quando tem um valor argumentativo1, como em:

(2) «O João adora dançar, então vai participar no concurso.»

Neste caso, então relaciona as duas orações, introduzindo uma conclusão que se pode extrair do que ficou dito anteriormente. Nesta situação, equivale a portanto.

Também é possível assinalar um uso de então com comportamento geral de conjunção em frases condicionais como:

(3) «Se queres ganhar o concurso, então tens de treinar todos os dias.»

Na frase (3), então introduz a oração que apresenta a condição necessária para a concretização da situação descrita na oração subordinada.

Numa perspetiva de análise do texto, então funciona nestas s...

Covid-19: Como descrever o desconhecido que abala o mundo?
Palavras e expressões usadas para retratar uma pandemia

A descrição das várias realidades envolvidas com o surto planetário do novo coronavírus tem levado a uma mobilização lexical interessante e expressiva, recuperada neste artigo da autoria da professora Carla Marques

Pergunta:

Com referência à consulta de 17/4/2020, cuja resposta circunstanciada abordou elegantemente as sutilezas sintáticas que envolvem a frase examinada, vejo-me forçado a retomar o assunto para aclarar um ponto restante de sombra.

Aqui, o período: «Anda por retos caminhos, que assim vais plasmar tua integridade e a virtude será teu brasão.»

Assumindo, como foi aventado na resposta, que a terceira oração ("e a virtude será teu brasão") é passível de ser considerada subordinada (consecutiva, no caso), seria ela subordinada a qual oração subordinante? À primeira? À segunda? Ou a ambas, que assim formariam um grupo semântico, cuja consequência é exposta na terceira?

Eis o que eu gostaria de saber. Com antecipados agradecimentos.

Resposta:

A resposta à questão colocada pelo consulente exige que estabeleçamos uma clara distinção entre dois planos de análise: o sintático e o semântico (e pragmático).

Formalmente, no plano sintático, as orações introduzidas por que são duas orações coordenadas, sendo o constituinte «e a virtude será o teu brasão» uma oração coordenada copulativa.

Não obstante, a interpretação associada à conjunção e pode ser muito variada, indo da simples adição (1) ao valor adversativo (2), à sequência temporal (3) ou ao conclusivo (4)1, entre outros:

(1) «Eu comi uma maçã e tu bebeste um sumo.»

(2) «Trabalhei imenso e não consegui entregar o trabalho.» (= mas)

(3) «Levantou-se e foi tomar banho.» (= depois disso)

(4) «Está doente e não vai entregar o trabalho.» (= por isso, portanto)

Este último valor (também designado inferencial) é descrito por Faria da seguinte forma: «As conexões inferenciais exprimem um argumento lógico. Pertencem a este tipo de conexões coordenativas em que o conteúdo proposicional do segundo membro coordenado é inferível a partir do primeiro, apresentado como razão ou motivo» (in Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 97).

 

Ora, no caso em apreço, também poderemos considerar a possibilidade de uma interpretação na qual a oração «vais plasmar tua integridade» é apresentada como a causa que terá como consequência «a virtude será teu brasão»:

(5) «vais plasmar tua integridade e (assim / consequentemente) a virtude será teu brasão.»

Estamos, to...

Pergunta:

No período «O pior ainda está por vir», os termos «está por vir» formam uma locução verbal ou duas orações?

Grata pela resposta.

Resposta:

No caso em apreço, a construção «estar por + infinitivo» forma um complexo verbal, no qual estar (por) funciona como verbo auxiliar que incide sobre o verbo principal atribuindo-lhe o aspeto de ação ainda não iniciada. Não estamos, portanto, perante duas orações, mas uma única.

A este propósito, consulte-se também a resposta «Estar por vir» vs. «estar para vir».

Disponha sempre!

Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se a frase apresentada é admissível: «Ele pretendia ser mais do que o que era.»

Obrigado.

Resposta:

A frase é admissível, embora possa ser considerada pouco elegante.

A frase apresentada é uma construção comparativa assente na estrutura «mais do que1 + oração», que pode, por exemplo, corresponder a (1):

(1) «O João trabalha mais do que a Ana trabalha.»

No caso em apreço, a oração que segue a estrutura «mais do que» é uma oração subordinada relativa introduzida por «o que», similar a (2):

(2) «Aquele jovem trabalha mais do que o que contrataste ontem.»

Em casos desta natureza, considera-se que a estrutura «o que»2 tem um nome elidido que seria determinado por o, pelo que (2) é equivalente a (2a):

(2a) «Aquele jovem trabalha mais do que o [jovem] que contrataste ontem.»

Na frase em questão, a interpretação do nome elidido torna-se mais complexa porque estamos perante uma significação ambígua introduzida pelo valor genérico da expressão «ser mais». De qualquer forma, fica claro que a expressão «o que» é, neste caso, equivalente a «aquilo que»:

(3) «Ele pretendia ser mais do que aquilo que era.»

Em termos estilísticos, todavia, a frase apresentada não será a mais elegante devido à sequência de duas estruturas «que»: «do que o que», pelo que, num texto mais formal, seria de procurar determinar com clareza o conceito que se compara, de forma a construir uma frase mais equilibrada e agradável ao ouvido. A este propósito, leia-se também a resposta «Melhor do que pensava».

Disponha sempre.