Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Entendo que "né" é um advérbio, resultado da contração da locução "não é", gostaria de saber. "Né" é um advérbio de dúvida? "Não é?" é uma locução adverbial ou verbal? "Né" é aceito na linguagem culta, é registrado?

Resposta:

A forma (resultante da contração de «não é?») surge já nalguns dicionários, como é o caso dicionário Houaiss ou do dicionário Priberam em linha. Trata-se de um advérbio próprio de um contexto oral e coloquial, o que significa que não é aconselhado na escrita (a não ser que se pretenda reproduzir as marcas de oralidade) nem em contextos formais.

pode ser usado como marcador conversacional, tendo como função assinalar

(i) um pedido de confirmação ou de concordância:

     (1) «O jogo acabou, né?»

(ii) uma pausa no discurso:

     (2) «E agora não digo mais nada porque uma pessoa também fica cansada de falar, né?»

Quando usado com o valor assinalado em (i), podemos considerar que é usado como um advérbio de dúvida.

Não obstante, a forma contraída pode ser utilizada apenas como um marcador de turno de fala, caso em que já será difícil atribuir-lhe o valor de um advérbio de dúvida. Neste contexto, será um mero indicador fático, não transmitindo qualquer informação discursiva.

Note-se, por fim, que a forma não contraída «não é?» pode ser usada nas mesmas situações em que encontramos o uso de né. Se esta estiver ao serviço da marca de dúvida, será uma locução adverbial com valor de dúvida (tal como acontece com a contração usada com o valor (i)).

Pergunta:

Haverá alguma incorreção na expressão «centro de propagação do vírus», quando pretendemos referir o local de onde irradiou o contágio?

Não será um caso de abuso, incorreção, ou "novo-riquismo" (linguístico), o uso de epicentro (nesta e noutras circunstâncias idênticas) em vez de centro?

Muito obrigado.

Resposta:

Epicentro é um termo da área da geofísica que designa o «ponto da superfície da Terra onde primeiramente chega a onda sísmica» (Dicionário Houaiss), enquanto a palavra centro refere o «ponto em relação ao qual equidistam os pontos de uma circunferência ou de uma superfície» (Ibidem). Assim, o epicentro, para além de manter a noção associada a centro (radical que integra a palavra), acrescenta-lhe a ideia de que este é o ponto onde o abalo é mais intenso.

Por extensão, esta mesma noção tem sido aplicada à zona onde se verifica um número de contágios superior ao das restantes regiões e onde a disseminação ocorre de forma mais rápida. Acrescente-se que a palavra centro apenas teria a capacidade de localizar um território, não referindo a sua intensidade.

Por estas razões, a meu ver, a utilização da palavra epicentro é válida nos contextos em que tem ocorrido, sendo passível de ser utilizada em contextos como os apresentados abaixo:

(1) «OMS diz que EUA podem tornar-se o "epicentro" da pandemia de Covid-19» (SIC Notícias)

(2) «Nova Iorque tem 25 mil casos e arrisca tornar-se o epicentro da pandemia» (Diário de Notícias)

Recorde-se, ainda, que a este propósito, o Ciberdúvidas aconselhou, nesta

Pergunta:

Queiram, por favor, explicar o que é «conteúdo proposicional».

Grata.

Resposta:

O conteúdo proposicional diz respeito ao valor semântico de um dado enunciado, ou seja, designa aquilo que se refere.

Atentemos, por exemplo, nas seguintes frases:

(1) «O João escreve o texto.»

(2) «João, escreve o texto.»

(3) «Gostava que o João escrevesse o texto.»

(4) «Escreverá o João o texto?»

Todas elas têm o mesmo conteúdo proposicional, que poderia ser verbalizado como «João escreve o texto».

A diferença entre eles está relacionada com o objetivo do locutor ao realizá-los: (1) produzir uma asserção; (2) dar uma ordem; (3) expressar um desejo; (4) formular uma interrogação (ver «Atos ilocutórios»).

Esta interpretação dos factos linguísticos enquadra-se na teoria dos atos de linguagem proposta por Austin e Searle1.

Disponha sempre!

 

1. A este propósito, para uma visão de âmbito escolar, consulte-se o Dicionário Terminológico 2008 (disponível aqui). 

Pergunta:

«O elemento foi pego em flagrante pela nossa equipe de força policial; com o mesmo* foi encontrada certa quantia em drogas, além de uma arma de fogo e dinheiro trocado".»

Usa-se com frequência o termo «o(a) mesmo» como recurso de retomada do termo citado anteriormente, (função dos pronomes?).Vejo certa construção usada na linguagem policial, como um jargão já consagrado; vi em alguns textos jornalísticos e, por incrível, ser empregado em algumas redações do ENEM a que tive acesso.

Gostaria de saber se é aceitável fazer certo uso, substituindo o pronome. Gostaria também da vossa opinião de como ficaria o trecho citado no começo, caso se substituísse o termo por um pronome, e gostaria de saber qual seria o pronome equivalente para a substituição.

Alguns colegas me apontaram como sendo o pronome ele, mas não achei tão formal o uso.

Agradeço atenciosamente a resposta.

Resposta:

Na qualidade de pronome demonstrativo, mesmo pode proceder a uma retoma anafórica, ou seja, representar o antecedente na sua oração. É esta a situação que ocorre na frase apresentada pela consulente, uma vez que «o mesmo» retoma o sintagma nominal «o elemento». Trata-se de um processo de relação anafórica válido, sendo também possível ser realizado pelo pronome pessoal ele:

(1) «O elemento foi pego em flagrante pela nossa equipe de força policial; com ele foi encontrada certa quantia em drogas, além de uma arma de fogo e dinheiro trocado.»

Não obstante, como refere Maria Helena Moura Neves¹, «É condenado em alguns manuais tradicionais o uso de o mesmo, os mesmos, as mesmas para referência a alguma pessoa ou a alguma coisa já mencionada (valendo por ele, ela, eles, elas, respectivamente)».1

Apesar desta advertência, o que é certo é que na comunicação social, tanto em português do Brasil como em português europeu, encontramos muitos exemplos de retoma anafórica de sintagmas verbais ou orações com recurso a «o mesmo», como se observa nos exemplos seguintes, nos quais se destaca a negrito o constituinte retomado:

(2) «Esta barragem foi construída pelo método de alteamento a montante, o mesmo usado nas barragens que se romperam em Brumadinho e em Mariana.» (

Pergunta:

«Anda por retos caminhos, que assim vais plasmar tua integridade e a virtude será teu brasão.»

No período acima, a oração «e a virtude será teu brasão» é uma oração coordenada aditiva, já que se liga pela conjunção e com a oração anterior; ou é uma oração coordenada explicativa, como a oração anterior, coordenada com esta, mas mantendo sua condição de oração explicativa?

Agradeço desde já.

Resposta:

A questão que coloca é muito interessante do ponto de vista sintático-semântico e envolve vários planos de análise.

Antes de mais importa esclarecer que, embora na tradição gramatical as orações explicativas sejam integradas na coordenação frásica, elas não são verdadeiramente estruturas coordenadas, pois compartilham algumas características tanto com as orações subordinadas como com as coordenadas.1 Por essa razão, alguns autores propõem a sua integração na classe das construções paratáticas, sendo consideradas um caso de suplementação.2

A frase apresentada pelo consulente deve ser analisada considerando vários níveis de constituintes. Ao nível da frase, ocorre uma relação de parataxe entre duas estruturas, como se ilustra pelos parênteses retos em (1), que evidenciam que uma oração complexa, «assim vais plasmar tua integridade e a virtude será teu brasão», se conecta com um valor semântico de explicação à oração anterior:

(1) «[Anda por retos caminhos], [que assim vais plasmar tua integridade e a virtude será teu brasão].»

Ou seja, é toda a oração complexa, introduzida por que, que assume o valor explicativo. Neste caso particular, no plano semântico, ela assume a função de justificar a ordem ou conselho presente em «Anda por caminhos retos».

No interior desta oração complexa, identificamos outro nível de análise, que evidencia a presença de outros constituintes, tal como ilustrado pelos parenteses retos em (2):

(2) «[que [[assim vais plasmar tua integridade] e [a virtude será teu brasão]]].»

Esta divisão mostra que a oração complexa é composta por duas orações coord...