Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Recentemente vi uma postagem nas redes sociais com a seguinte frase: «Namore alguém que acredita na ciência e defende o SUS.»

Minha dúvida é: a forma certa não seria «Namore alguém que acredite na ciência e defenda o SUS»? Ou as duas formas estão corretas?

Desde já, agradeço.

Resposta:

As duas frases estão corretas. A diferença entre elas encontra-se na sua interpretação.

Assim, usa-se o modo indicativo se a oração adjetiva relativa restritiva se refere a alguém em concreto ou se descreve alguém que existe, isto é, que apresenta as características definidas na frase.

modo conjuntivo/subjuntivo será selecionado para designar uma realidade que pode não ter existência, ou seja, se se admitir que pode não existir uma pessoa com as características referidas na frase.

Disponha sempre!

Pergunta:

Quando escrevemos um soneto, podemos dizer que o esquema rímico é o seguinte: ABAB/ABAB/CDD/CDD.

No entanto, quando escrevo um poema que esteja, por exemplo, em versos alexandrinos, e eu desejo rimar os hemistíquios, como posso proceder para representar meu esquema rímico?

Pensei em algo assim, sem saber se faço direito: "AaBAB/AaBAB/CcDD/CcDD"

Nessa minha representação, o segundo verso de cada estrofe teria seu primeiro hemistíquio rimado com o verso anterior.

Obrigado.

Resposta:

As convenções utilizadas para representar o esquema rimático de um poema são diversas, não existindo um critério uniforme no que respeita ao uso de minúsculas e maiúsculas.

Por exemplo, alguns autores utilizam a letra minúscula para sinalizar uma rima aguda, sendo a rima grave assinalada por letra maiúscula. Outros autores utilizam a letra minúscula para sinalizar um verso de medida menor relativamente à medida dominante, que é marcada com a maiúscula. Na lírica tradicional, as maiúsculas podem ser usadas para indicar a rima do mote e para assinalar a rima do verso final de cada glosa que rima com um verso do mote. Alguns autores recorrem às maiúsculas para sinalizar a rima do refrão.

Relativamente à rima dos hemistíquios, esta poderá ser sinalizada por parênteses, como se observa nesta representação do esquema rimático da ode camoniana «Pode um desejo imenso», de que apresentamos a primeira estrofe:

                                                         Pode um desejo imenso

     arder no peito tanto que à branda e à viva alma o fogo intenso

     lhe gaste as nódoas do terreno manto,

     e purifique em tanta alteza o esprito

    com olhos imortais

    ...

Pergunta:

Agradeço que me expliquem como analisar a frase «Ainda bem que tiveste uma boa classificação nas provas de apuramento.»

Quais as funções sintáticas de «ainda bem» e de «que» nesta frase?

Resposta:

A frase em questão é de tipo exclamativo, ou seja, o falante veicula a sua atitude subjetiva (neste caso, de alegria) perante um dado conteúdo proposicional. No plano da modalidade, esta frase traduz uma modalidade avaliativa, na qual o falante procede a uma apreciação do conteúdo proposicional apresentado.

Em termos sintáticos, a frase tem como núcleo uma locução adverbial avaliativa («ainda bem», equivalente a felizmente), que é um predicador que seleciona um complemento oracional introduzido pela conjunção completiva que. Assim, a oração «que tiveste uma boa classificação nas provas de apuramento» é uma oração subordinada substantiva completiva, com função de complemento da locução adverbial.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem, por favor, a seguintes dúvidas, por falta de consenso, sobre a análise sintática [dos constituintes] da frase seguinte: «A lua é como barca perdida.»

«barca perdida» –- predicativo do sujeito; «perdida» – modificador restritivo do nome. [...]

Tenho pesquisado em diferentes fontes linguísticas e não encontrei um único exemplo semelhante que me convença que «perdida» é um '«modificador restritivo do nome» inserido no predicativo do sujeito «como barca perdida».

Se o predicativo do sujeito é uma função sintática interna ao grupo verbal e que pode ser desempenhada por um grupo nominal, cujo núcleo do grupo é um nome, que o define, sendo neste caso «barca», e se o predicativo do sujeito está relacionado com o sujeito e completa o sentido do verbo copulativo ser, por que razão o segmento «barca perdida» não é apenas predicativo do sujeito, dado que predica a «A lua»?

Por outro lado, «barca perdida» está antecedida por «como», que introduz o segundo termo de comparação nesta frase. Então a «lua» é comparada a «barca perdida». Caso «perdida» seja um modificador restritivo do nome, restringe [o] quê, «barca»?

Se omitirmos o hipotético modificador restritivo do nome, o sentido do grupo nominal fica completo sem este? Considero que não! A frase fica agramatical: «A lua é como barca.» O modificador não é selecionado pelo nome «barca», pelo que [«perdida»] não pode ser um modificador restritivo do nome, ao contrário do complemento do nome, que é selecionado por um nome.

Por último, será que «perdida» é modificador restritivo do nome de «A lua», dado que completa o sentido do verbo copulativo ser e está relacionado com o sujeito «A lua»? Julgo que não! Mais uma vez a frase fica sem sentido: «A lua é como perdida.»

Face ao exposto, considero que os elementos da expressão «como lua perdida» são indissociáveis e, por isso, constituem o predicativo do sujei...

Resposta:

A construção apresentada é uma frase copulativa que é composta por um constituinte com a função sintática de sujeito («A lua»), por um verbo copulativo («é») e por um predicativo do sujeito («como barca perdida»).

O constituinte com função de predicativo de sujeito tem a particularidade de ter o seu conteúdo semântico veiculado por uma oração comparativa que introduz na frase um valor semântico de semelhança. Esta função sintática comprova-se pelo facto de o mesmo espaço sintático poder ser preenchido por um grupo nominal (1) ou por um adjetivo (2):

(1) «A lua é um satélite

(2) «A lua é grande

Relativamente ao constituinte «como barca perdida», verificamos que estamos perante uma oração comparativa caracterizada pela elipse do verbo («como barca perdida é»)1. Trata-se, portanto, de um constituinte marginal na formação do predicativo do sujeito. Não obstante, é uma opção válida, como o é o preenchimento desta função por um sintagma preposicional, o que acontece em (3):

(3) «O João é do meu ano2

Quanto à função sintática desempenhada pelo constituinte «perdida», é importante recordar, antes de mais, que as funções sintáticas operam em planos distintos: ao nível da frase, ao nível do predicado e ao nível do sintagma. Isto significa que os constituintes se relacionam com um elemento nuclear gerando função em cada um dos níveis que funcionam e que, num nível superior, será o constituinte, como um todo, que se ...

Pergunta:

A minha questão é relativa à correta conjugação do verbo "Ser" quando em conjunto com verbos como "Julgar", "Imaginar", "Supor", "Acreditar" ou "Crer". Atente-se nas seguintes hipóteses:

«Quando somos jovens, julgamos ser eternos.»

«Quando somos jovens, julgamos sermos eternos.»

Qual é a frase correta? Ou estarão ambas certas?

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

A opção correta é a primeira frase apresentada.

As frases apresentadas constituem exemplos de subordinação infinitiva, na qual um verbo pertencente à oração subordinante seleciona uma construção com um verbo no infinitivo, como se observa em (1):

(1) «Eles querem ver o espetáculo teatral.»

O verbo no infinitivo pode flexionar (o designado infinitivo pessoal) ou não (tradicionalmente designado infinitivo impessoal).

Uma das situações a considerar é aquela em que o sujeito implícito do verbo no infinitivo é correferente com o sujeito do verbo principal, como acontece em (2). Neste caso, o verbo no infinitivo não flexiona:

(2) «Tu decidiste [tu] fazer um bolo.»

No caso em que os sujeitos (do verbo principal e do verbo no infinitivo) são diferentes, a flexão tem lugar:

(3) «Ele lamenta [tu] teres tomado essa decisão.»

À frase apresentada pelo consulente aplicam-se estes princípios. Assim, podemos verificar que o sujeito da oração subordinante (nós) é correferente com o sujeito da oração infinitiva («nós sermos eternos»). Então, neste caso, não há lugar a flexão do verbo infinitivo, sendo a frase correta:

(4) «Quando somos jovens, julgamos ser eternos.»

Disponha sempre!

1. A subordinação infinitiva engloba uma diversidade de particularidades que não contemplanos nesta resposta. Para maior aprofundamento, cf. Barbosa e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1901 - 1977.