Pergunta:
A frase «Vós, querida filha, dissestes isso?» levanta-me algumas dúvidas na sua análise sintática.
1) À partida consideraria o constituinte «Vós, querida filha» como sujeito, sendo «querida filha» modificador apositivo de «Vós».
2) Contudo, não existirá também a possibilidade de considerar que os constituintes «Vós» e «querida filha» se destinam a interpelar o interlocutor assumindo assim a função de vocativo, ficando o sujeito como nulo subentendido («Vós»)?
3) Mais remota talvez esta possibilidade, mas não poderia um dos dois constituintes assumir o papel de sujeito e o outro de vocativo? (acrescento o seguinte: na frase «tu disseste isso?» claramente «tu» é sujeito; na frase «tu, disseste isso?» parece-me claro que «tu» desempenha a função de vocativo; contudo, na frase «tu, meu amor, disseste isso?» torna-se difícil perceber se «tu» ou «tu, meu amor» funciona como vocativo ou como sujeito, pois se é verdade que o vocativo se separa com vírgula do resto da oração, o mesmo se passa com o modificador apositivo, indicando nesse caso as vírgulas a separação do modificador apositivo em relação ao resto do sujeito). Ou dependerá tão só da entoação dada à frase?
Sem mais, obrigado e bom trabalho
Resposta:
A frase apresentada é de interpretação dúbia, pois poderá, na verdade, associar-se a três análises distintas: «vós, querida filha» pode ser sujeito: o mesmo constituinte poderá ser vocativo; o constituinte «querida filha», poderá, por si só, ter a função de vocativo, sendo a função de sujeito desempenhada por «tu», isoladamente.
Uma frase como a apresentada em (1) apresenta este mesmo constituinte a desempenhar a função de vocativo:
(1) «Vós, querida filha, Deus vos proteja!»
Neste caso, não há ambiguidade: «Deus» tem a função de sujeito de «proteja», o que se confirma por concordância, por sua vez, o constituinte «Vós, querida filha» desempenha a função de vocativo, pois surge desligado da estrutura argumental da frase, não tendo qualquer relação sintática com o verbo e desempenhando uma função apelativa ligada à 2.ª pessoa1.
Acresce ainda que, tradicionalmente, o vocativo é um constituinte isolado. Todavia, é possível identificar vocativos com expansões (como vimos, por exemplo, aqui), que poderão corresponder a orações relativas (2) ou a modificadores do nome (3):
(2) «Vós, que tendes todo o poder, deixai que a bondade vos inspire!»
(3) «João, meu caro amigo, vou chegar atrasado à reunião.»
Pelo exposto, as possibilidades aventadas pelo consulente em 3) são possíveis, embora as frases apresentadas pareçam pouco aceitáveis, se pensarmos nos usos do quotidiano. Não obstante, um uso similar ao apresentado em (4) corresponde à possibilidade que refere e talvez seja mais aceitável para a maioria dos falantes: