Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A frase «Vós, querida filha, dissestes isso?» levanta-me algumas dúvidas na sua análise sintática.

1) À partida consideraria o constituinte «Vós, querida filha» como sujeito, sendo «querida filha» modificador apositivo de «Vós».

2) Contudo, não existirá também a possibilidade de considerar que os constituintes «Vós» e «querida filha» se destinam a interpelar o interlocutor assumindo assim a função de vocativo, ficando o sujeito como nulo subentendido («Vós»)?

3) Mais remota talvez esta possibilidade, mas não poderia um dos dois constituintes assumir o papel de sujeito e o outro de vocativo? (acrescento o seguinte: na frase «tu disseste isso?» claramente «tu» é sujeito; na frase «tu, disseste isso?» parece-me claro que «tu» desempenha a função de vocativo; contudo, na frase «tu, meu amor, disseste isso?» torna-se difícil perceber se «tu» ou «tu, meu amor» funciona como vocativo ou como sujeito, pois se é verdade que o vocativo se separa com vírgula do resto da oração, o mesmo se passa com o modificador apositivo, indicando nesse caso as vírgulas a separação do modificador apositivo em relação ao resto do sujeito). Ou dependerá tão só da entoação dada à frase?

Sem mais, obrigado e bom trabalho

Resposta:

A frase apresentada é de interpretação dúbia, pois poderá, na verdade, associar-se a três análises distintas: «vós, querida filha» pode ser sujeito: o mesmo constituinte poderá ser vocativo; o constituinte «querida filha», poderá, por si só, ter a função de vocativo, sendo a função de sujeito desempenhada por «tu», isoladamente.

Uma frase como a apresentada em (1) apresenta este mesmo constituinte a desempenhar a função de vocativo:

(1) «Vós, querida filha, Deus vos proteja!»

Neste caso, não há ambiguidade: «Deus» tem a função de sujeito de «proteja», o que se confirma por concordância, por sua vez, o constituinte «Vós, querida filha» desempenha a função de vocativo, pois surge desligado da estrutura argumental da frase, não tendo qualquer relação sintática com o verbo e desempenhando uma função apelativa ligada à 2.ª pessoa1.

Acresce ainda que, tradicionalmente, o vocativo é um constituinte isolado. Todavia, é possível identificar vocativos com expansões (como vimos, por exemplo, aqui), que poderão corresponder a orações relativas (2) ou a modificadores do nome (3):

(2) «Vós, que tendes todo o poder, deixai que a bondade vos inspire!»

(3) «João, meu caro amigo, vou chegar atrasado à reunião.»

Pelo exposto, as possibilidades aventadas pelo consulente em 3) são possíveis, embora as frases apresentadas pareçam pouco aceitáveis, se pensarmos nos usos do quotidiano. Não obstante, um uso similar ao apresentado em (4) corresponde à possibilidade que refere e talvez seja mais aceitável para a maioria dos falantes:

Pergunta:

Relativamente à seguinte frase:

«No momento imediatamente anterior à execução de um pontapé de saída pela equipa visitante, na sequência da obtenção de um golo pela equipa visitada, os árbitros apercebem-se que esta se encontrava a jogar com um jogador a mais.»

O esta (apercebem-se que esta) está a mencionar a equipa visitante ou a equipa visitada? E quais os termos técnicos que suportam essa mesma resposta?

Obrigado.

Resposta:

Sem outro contexto que possa apontar para um sistema de referências distinto, o demonstrativo esta refere-se a «equipa visitada».

A questão colocada enquadra-se no domínio do uso anafórico dos demonstrativos, ou seja, da sua capacidade para estabelecer uma relação com um sintagma nominal, presente numa frase ou oração anterior. Este processo é ilustrado em (1), onde o demonstrativo este retoma o sintagma nominal antecedente «Steven King»:

(1) «O livro foi escrito por Steven King. Este escritor é excelente.»

Numa situação comum, o demonstrativo toma como antecedente o sintagma nominal mais próximo, estabelecendo com ele uma relação de concordância:

(2) «O livro foi escrito por Elena Ferrante. Esta escritora é excelente.»

O sistema de retoma anafórica ocorre com qualquer dos demonstrativos (este, esse, aquele, isto, isso, aquilo), que se especializam nalguns casos. Por exemplo, o demonstrativo neutro isto/isso/aquilo retoma tipicamente o conteúdo proposicional de toda uma oração ou toda uma frase:

(3) «O meu livro favorito foi adaptado para o cinema. Isso deixou-me feliz.»

O demonstrativo aquele é usado preferencialmente para apontar para sintagmas nominais mais distantes e que são seguidos de outro sintagma nominal, que se encontra mais próximo do demonstrativo, como se vê em (4) onde o demonstrativo aquele tem como antecedente «livro de terror» e não «de ação»:

Pergunta:

Na frase «Se alguma vez se distraía deste exercício de memória, era para pensar nas feições da amada do seu hóspede» (in Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco), qual é o sujeito do verbo ser («era»)?

O contexto mais alargado em que a frase surge é o seguinte : «Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga; e se 'alguma vez se distraía deste exercício de memória, era para pensar nas feições da amada do seu hóspede.»

Grata pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

Na frase em apreço, o verbo ser é usado de forma impessoal, o que significa que não tem sujeito.

A construção «ser para» tem uma natureza coloquial e é usada para exprimir uma dada intenção, sendo o sentido do verbo próximo do verbo acontecer e referindo-se, neste caso, a um facto expresso na oração subordinada condicional. Trata-se, assim, de uma construção com um valor próximo de «isto acontecia com a intenção de».

(Ver também esta resposta).

Disponha sempre!

Pergunta:

Em inglês, parece existir uma ordem popularmente aceite entre adjectivos e os substantivos que classificam, que consiste em algo como: opinião, tamanho, idade, forma, cor, origem, material, utilidade. Portanto, dizer «It is my adorable big old square black English leather business suitcase» soa bem, apesar de claramente não ser uma frase que se ouça no dia-a-dia, e qualquer subconjunto desses adjectivos soa bem desde que se mantenha a mesma ordem.

A minha pergunta é, existe alguma heurística semelhante em português? Os adjectivos em português parecem assumir uma função mais figurativa quando à esquerda do substantivo, e mais objectiva quando à direita. Qual seria a melhor maneira de traduzir a frase em inglês acima numa única frase em português?

Obrigado.

[N.E. — A pergunta do consulente está redigida segundo a norma ortográfica de 45. ]

Resposta:

Em português, os adjetivos qualificativos podem, em geral, ser colocados em anteposição, contribuindo para uma apreciação mais subjetiva ou não restritiva do nome, ou em posposição ao nome, definindo uma classificação, uma restrição ou um traço objetivo.

Não sendo possível apresentar de forma absoluta uma tipologia de colocação de adjetivos, até porque muitos podem sofrer recategorizações que permitem uma utilização que, à partida, a sua natureza poderia não permitir, é possível apontar alguns padrões de colocação. Assim, em traços gerais, colocam-se antes do nome, adjetivos que admitem interpretação subjetiva (1), adjetivos graduáveis (2), adjetivos que expressam propriedades comportamentais (3) e mentais (4), de propriedade física que possam ter uso figurado (5) e adjetivos de leitura adverbial (6):

(1) «grandioso espetáculo»

(2) «(muito) rápido crescimento»

(3) «simpática senhora»

(4) «louca atitude»

(5) «baixa potência»

(6) «um velho amigo» (= de há muito tempo)

Em posição pós-nominal, surgem preferencialmente os adjetivos não graduáveis (7), os adjetivos de forma (8) e os relacionais (9), entre outros1:

(7) «câmara fotográfica»

(8) «câm...

Pergunta:

Primeiramente eu agradeço e parabenizo todos deste excelente e grandioso sítio, que é o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

Trecho de uma carta de Monteiro Lobato (1882-1948) a Godofredo Rangel (1884-1951), em Barca de Gleyre:

«Apontas-me, como crime, a minha mistura de você com tu na mesma carta e às vezes no mesmo período. Bem sei que a Gramática sofre com isso, a coitadinha; mas me é muito mais cômodo, mais lépido, mais saído - e, portanto, sebo para coitadinha. Não fiscalizo gramaticalmente as frases em cartas. Língua de carta é língua em mangas de camisa e pé-no-chão, como a falada. Continuarei a misturar tu com você como sempre fiz... [...]»

1 - Os termos «como crime» e «como a falada» são classificados como aposto?

2 - No caso de o aposto ser formado por uma oração ou período todos, deve ser classificado somente como aposto? Ou deve ser analisado como uma oração ou período independente? Não achei na gramática tal explicação.

Agradeço-vos as respostas.

Resposta:

Os constituintes destacados pelo consulente têm naturezas distintas.

Assim, «como crime» desempenha na frase em que se insere a função de predicativo do complemento direto. O verbo apontar é um verbo transitivo-predicativo que seleciona, portanto, um complemento direto e um predicativo desse complemento direto, tal como acontece na frase (1), construída com o verbo transitivo-predicativo considerar:

(1) «Eles consideram o João simpático.» (complemento direto: «o João»; predicativo do complemento direto: «simpático»)

No caso do verbo apontar, este tem a especificidade de reger a preposição como, que introduz o predicativo do complemento direto.

Já o constituinte «como a falada» é uma oração subordinada comparativa com o verbo elidido, que corresponde à frase completa apresentada em (2):

(2) «Língua de carta é língua em mangas de camisa e pé-no-chão, como a falada é.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos dirige.