Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se na frase «Amanhã Blimunda terá os seus olhos, hoje é dia de cegueira», podemos considerar a existência de deíticos pessoais, espaciais e temporais.

Qual a melhor forma de os explicar aos alunos?

Resposta:

O estilo saramaguiano, bem evidente em Memorial do Convento, assume como marca característica o recurso ao sistema deítico. O narrador, adotando, não raro, um discurso direto livre, recorre aos deíticos, situando-se em momentos temporalmente distintos: o presente da ação relatada, localizando no século XVIII, e o presente da produção escrita (séc. XX). Este narrador situa-se livremente ora num ora noutro tempo, realizando a sua enunciação a partir desses tempos/espaços.

Assim, no caso da frase apresentada, o enunciador, que neste caso se identifica com o narrador, encontra-se no tempo de Blimunda. Por esta razão, é possível assinalar deíticos temporais: amanhã, hoje, flexão verbal em terá e é.

Nesta frase, não estão presentes deíticos pessoais porque a deixis envolve apenas o falante e o seu destinatário (o eu e o tu). A 3.ª pessoa, o ele, não participa diretamente na comunicação. Também não estão presentes na frase deíticos espaciais, pois não existem elementos que procedam à localização de entidades em relação ao contexto em que a enunciação ocorre1.

Relativamente à abordagem didática da deixis, uma opção segura será a de começar por um tratamento teórico do sistema deítico, recorrendo a exemplos das interações verbais quotidianas e à sistematização das palavras / funções sintáticas que tipicamente se associam à deixis, para depois avançar para outros contextos de utilização dos deíticos.

Disponha sempr...

Pergunta:

Gostaria de saber se é possível que o verbo combinar reja a preposição para seguida de infinitivo: «Combinamos para ir à praia»;«Quando é que combinamos para fazer um passeio?»

Sei que o verbo combinar pode reger a preposição para quando depois se menciona alguma expressão temporal: «combinamos para sexta-feira»; «combinamos para as quatro da tarde».

Mas poderia considerar-se para + infinitivo?

Desde já agradeço a atenção dispensada.

Resposta:

Em termos normativos, para não deve ser usado em construções com o verbo combinar, quando usado com o significado de «entrar em acordo para a consecução de um determinado fim» (Dicionário Houaiss) ou de «estabelecer (uma ação, uma resolução, etc. com que outrem concorda)» (Dicionário Houaiss). Nestes casos, o verbo não rege preposição, sendo construído, por exemplo, com nome (1) ou com uma oração subordinada substantiva completiva não finita (2):

(1) «Combinamos um encontro.»

(2) «Combinamos encontrar-nos no café.»

Com o significado de «unir para formar um composto» (Dicionário Houaiss), já é possível assinalar a construção do verbo com para, que introduz uma oração subordinada adverbial final:

(3) «Combinaram farinha e especiarias para fazer uma nova receita.»

Relativamente à construção apresentada pela consulente, no Corpus do Português, de Mark Davies, não encontramos registo deste uso a não ser, pontualmente, em transcrições de entrevistas ou em reproduções da linguagem oral, tal como acontece em (4):

(4) «Normalmente ou à segunda ou terça combinamos para ver problemas que aconteceram na semana antes.» (Diário de Notícias, 21/07/2017)

Nestas construções, para é usado como um complementador que introduz a oração subordinada substantiva completiva, tendo, assim, uma função redundante, uma vez que o verbo se constrói diretamente com a oração, como se viu em (2).

Disponha sempre!

Pergunta:

Como se classificaria a oração subordinada na frase «insistia para que eu me imaginasse sempre a voar»?

Uma professora considera tratar-se de uma oração subordinada adverbial final, uma vez que tem o para que, mas a meu ver a oração não tem valor de finalidade, parecendo-me antes uma oração substantiva completiva, visto que o verbo insistir não me parece poder ficar sozinho, exigindo uma oração que o complete.

Obrigada.

Resposta:

A frase, sem outro contexto, é dúbia. Todavia, poderemos considerar que inclui uma oração subordinada adverbial final, se tiver um sentido similar a:

(1) «Insistia na leitura do poema com o objetivo de me levar a imaginar sempre a voar.»

Caso incluísse uma oração subordinada substantiva completiva, a sua forma possível seria:

(2) «Insistia para eu me imaginar sempre a voar.»

Neste caso, o verbo insistir é usado como verbo declarativo e a oração que o complementa corresponde ao conteúdo do que foi dito. Esta oração tem a particularidade de ser introduzida pela preposição para1, que é regida pelo verbo insistir, com o qual forma um predicador complexo2.

Verbos como dizer, implorar, insistir ou pedir são verbos que podem ter como complemento uma oração infinitiva introduzida pela preposição para (seguida de verbo no infinitivo).

Disponha sempre!

 

1. Para distinguir a preposição para que introduz uma  oração subordinada adverbial final da preposição para

Pergunta:

Se substituirmos o «a respeito de» e o sobre teremos objeto, ou continua sendo adjunto adverbial?

«A menina da qual estávamos falando chegou» (objeto?)

«Estávamos falando a respeito da menina.» (adjunto adverbial).

«Estávamos falando sobre a menina» (adjunto adverbial).

«Estávamos falando da menina» (objeto)

Fiz essa avaliação. Creio que esteja certa. Há um pouco de confusão entre adjunto adverbial e objeto indireto...

Obrigado a todos do Ciberdúvidas.

Resposta:

Todos os constituintes introduzidos por preposição / locução prepositiva regida pelo verbo falar têm a função de complemento relativo1 e 2.

O verbo falar admite vários tipos de construção:

(i) como verbo intransitivo, que não pede, portanto, complementos:

      (1) «Todos os deputados falaram.»

(ii) como verbo transitivo direto, ou seja, que pede complemento direto/objeto direto:

     (2) «Ele falou o que lhe apeteceu.»

(iii) como verbo transitivo indireto, pedindo ou complemento indireto / objeto indireto (3) ou complemento oblíquo/complemento relativo (4):

      (3) «Ele falou à Maria.»

      (4) «Ele falou do projeto.»

Nos casos apresentados pelo consulente, o verbo falar é construído com um complemento relativo. Este complemento pode ser introduzido por diferentes preposições / locuções prepositivas, tais como de, sobre, a respeito de. A preposição é pedida pelo verbo, tendo cada preposição / locução um valor semântico distinto. Assim, nas frases apresentadas, os constituintes destacados têm todos a função de complemento relativo:

(5) «A menina da qual estávamos falando chegou.»

(6) «Estávamos falando a respeito da menina

Pergunta:

Gostaria de perguntar como classificariam quanto à função sintática o constituinte à direita do nome pergunta na frase «Para responder à pergunta sobre o sentido que a dada altura nos assalta.»

Será complemento do nome ou modificador?

Resposta:

O constituinte «sobre o sentido que a dada altura nos assalta» tem a função de complemento do nome pergunta.

O nome pergunta é um nome deverbal, formado por derivação não afixal do verbo perguntar. Isto significa que herda os argumentos do verbo:

(1) «Ele perguntou as horas.»

(2) «A pergunta sobre as horas foi incómoda.»

Nestes casos, os argumentos do nome têm sempre a função de complemento, sendo tipicamente introduzidos por uma preposição1 que é muito frequentemente de, mas que também poderá ser por, em, sobre, entre outras (ver aqui).

Refira-se ainda que o constituite em análise, «sobre o sentido que a dada altura nos assalta», inclui no seu interior uma oração subordinada adjetiva relativa, «que a dada altura nos assalta», que tem a função sintática de modificador do nome restritivo.

Disponha sempre!

 

1. cf.  Raposo e Miguel, in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 715.