Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
46K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Eu sempre tive dificuldade de precisar o sentido e possíveis sinônimos para esse justamente que está ali na frase [mais abaixo]. Muitas vezes, pego frases com quatro ou cinco ocorrências dele, mas me é difícil substituir por alguma coisa que não seja outro advérbio de modo — precisamente, exatamente. Mais do que isso, não sei bem qual é o sentido exato dessa palavra nesse uso: parece significar recuperar alguma coisa ao mesmo tempo em que se afirma que essa coisa corresponde, com precisão quase divina, àquilo que se procurava. Entendem o que quero dizer?

Caso entendam, lhes ocorre algum substituto?

«Diante dessa exigência, a ontologia da determinação tem duas principais alternativas: ela pode, justamente, afirmar que a determinação de um objeto é dada necessariamente por aquilo que ele é em si mesmo, independentemente de sua relação com outros objetos (e a pergunta se torna, então, qual é o fundamento de que ele seja em si mesmo aquilo que ele é), ou…».

Resposta:

A palavra justamente pode ter um uso gramatical como advérbio de modo ou como advérbio focalizador:

 (i) é usado como advérbio de modo em frases como (1):

(1) «O juiz condenou-o justamente.»

Neste caso, o advérbio é equivalente a «de modo justo», «conforme à justiça»;

(ii) é usado como advérbio focalizador1, funcionando num plano mais discursivo, em frases como (2) ou (3):

(2) «O filme de que te falei foi justamente o deste realizador.»

(3) «Não pude ir ao cinema, justamente porque começou a chover.»

Quando assume a função de focalização, o advérbio serve «para confirmar, particularizar ou realçar (qualitativa ou quantitativamente) a entidade ou entidades expressas pelo foco relativamente a um conjunto mais vasto no qual se incluem» (Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1675). Nestes usos, o advérbio pode equivaler a exatamente, precisamente, «com precisão», «com rigor».

 Disponha sempre!

1. Os advérbios focalizadores «realçam, de formas diferentes, uma entidade ou grupo de entidades na perspetiva da sua pertença a um determinado conjunto mais vasto de elementos» (Raposo in Ibidem).

Pergunta:

Peço seu conselho e orientação sobre frases com a seguinte construção: «Ele defendeu a universidade alemã (,) também porque, durante o Terceiro Reich, havia vivido seu próprio fracasso» ou «Ela saiu de casa com o guarda-chuva (,) especialmente porque a mãe lhe pedira».

Não sei dizer se a colocação da vírgula é adequada neste contexto, em que aparece um adjunto adverbial logo antes da conjunção explicativa. Meu primeiro sentimento é o de colocá-la, mas antecedendo o advérbio.

Porém fica a dúvida: isso é correto? A que oração pertence esse adjunto? Será um modificador da conjunção?

Agradeço desde de já e parabenizo a equipe do site pelo belo trabalho!

Resposta:

A vírgula colocada antes dos advérbios também e especialmente está, nos casos apresentados, correta.

Estes advérbios incidem sobre a oração subordinada com uma função focalizadora ao mesmo tempo que contribuem para a coesão interfrásica, funcionando como conectores. Ao incidirem sobre a oração, realçam a causa apresentada (que será uma entre outras). Esta ação contribui para que as orações apresentadas sejam próximas das orações adverbiais periféricas. Ou seja, estamos perante orações que têm «uma menor ligação prosódica e estrutural à oração principal» (Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2032). Por esta razão, estas orações são antecedidas de pausa na oralidade e de vírgula na escrita.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos dirige.

Cf. Saiba usar a vírgula

A bem da previdência e do respeito pela língua da República
Uma candidatura a precisar de urgente revisor linguístico...

O cartaz da apresentação  pública da candidatura do deputado português André Ventura à Presidência da República tinha não um, não dois, mas três erros  tão garrafais quanto a respetiva legenda...

Pergunta:

Tenho uma dúvida quanto ao uso do advérbio talvez combinado com o pretérito imperfeito do subjuntivo.

Na frase «Talvez eu possa ir ao clube hoje», o verbo poder está no presente do subjuntivo porque expressa dúvida quanto ao presente (hoje, mais tarde, daqui a pouco etc).

Já a frase «Talvez eu pudesse ir ao clube ... » deve ser completada com um período temporal passado (ontem, no mês passado etc), ou a construção com hoje é gramaticalmente aceitável?

Resposta:

Ambos os tempos verbais são aceitáveis, embora veiculem valores distintos.

As frases introduzidas pelo advérbio talvez expressam um valor modal de possibilidade, o que justifica a seleção do modo conjuntivo.

No caso de optar pelo presente do conjuntivo em coocorrência com o advérbio hoje, o locutor expressa uma situação que tem alguma probabilidade de vir a ocorrer no intervalo de tempo correspondente ao dia de hoje:

(1) «Talvez possa ir ao clube hoje.»

Se optar pelo pretérito imperfeito do conjuntivo em coocorrência com o advérbio hoje, o locutor associa à situação um grau de incerteza com uma possibilidade de ocorrência de grau inferior à expressa na frase (1):

(2) «Talvez pudesse ir ao clube hoje.»

Este maior grau de incerteza fica patente na possibilidade de a frase (2) poder ser negada:

(2a) «Talvez pudesse ir ao clube hoje, mas não vou.»

Já a frase (1) não pode ser negada, sob pena de ser sentida como anómala do ponto de vista semântico, o que acontece dado o maior grau de certeza expresso pelo presente do conjuntivo:

(1a) «*Talvez possa ir ao clube hoje, mas não vou.»

Disponha sempre.

*marca a anomalia semântica da frase.

Pergunta:

Qual a função sintática desempenhada pela palavra televisivas na seguinte expressão: «atriz de telenovelas e séries televisivas»?

Obrigada

Resposta:

O adjetivo televisivas tem a função de modificador restritivo do nome.

Televisivas é um adjetivo relacional, pelo que tem a função de modificar o nome sobre o qual incide, relacionando o sentido deste último com o do nome do qual deriva (televisão). Deste modo, atribui ao nome séries uma propriedade que não lhe é inerente. Como afirmam Brito e Raposo, «[e]stes adjetivos [considerados classificadores] relacionam-se com nomes, morfologicamente (primavera, cinema) ou etimologicamente (fluvial, cultismo, do latim fluvialis, por sua vez derivado de fluvius 'rio'). As combinar-se com um nome (dia, pesca revista, nos exemplos), atribuem-lhe as propriedades que caracterizam o nome com que se relacionam, criando subtipos [...]. Assim, dia primaveril representa um tipo de dia, com características próprias da primavera (temperatura agradável, céu azul); pesca fluvial denota o tipo de atividade piscatória exercida em rios; e revista cinematográfica é um tipo de revista que versa sobre temas que têm a ver com o cinema.» (in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1069-1070).1