Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é a função sintática de «burla», em «história universal da burla»?

Resposta:

O grupo preposicional «da burla» tem a função sintática de complemento de nome.

Os nomes que se referem a obras de natureza cultural, como «artigo, capítulo, filme, história, livro, ópera, quarteto, relatório, sinfonia, trabalho, produzidas por um autor (que semanticamente corresponde ao papel temático de agente) e que, dependendo do meio artístico usado, podem ser sobre determinado assunto ou tópico»1 constroem-se com complemento de nome.

O constituinte universal, por seu turno, desempenha a função de modificador do nome restritivo, na medida em que é um adjetivo que atribui uma propriedade ao nome que modifica, restringindo a extensão da significação desse mesmo nome2.

Disponha sempre!

 

1. Brito e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1064.

2. cf. Ibidem, pp. 1084-1085.

Pergunta:

«O frango está a cozinhar», em vez de «[…] a ser cozinhado». Há aqui alguma figura de estilo?

Obrigado.

Resposta:

Não consideramos que exista um recurso expressivo na frase apresentada. Poderemos, sim, considerar que as frases estão ao serviço de diferentes intenções do falante.

Assim, por um lado, poderemos focalizar a nossa atenção no contraste ativa/passiva entre as frases (1) e (2), que permite focalizar ou o agente da ação, na frase (1), ou o paciente da ação, na frase (2):

(1) «O João está a cozinhar o frango.» (O João é o agente de cozinhar)

(2) «O frango está a ser cozinhado pelo João.» (O frango é o paciente, que sofre a ação de cozinhar)

Por outro lado, frases como a apresentada pelo consulente parecem ser próximas das construções de alternância causativa-incoativa1. Este verbos caracterizam-se por, na forma causativa, focalizar o sujeito que pratica ação do verbo, que é o "causador" da situação descrita, e o complemento direto que representa o paciente dessa ação. O verbo  cozinhar na frase apresentada em (3) surge na forma causativa, sendo «O João» o agente e «o frango» o paciente:

(3) «O João está a cozinhar o frango.»

Os verbos surgem na forma incoativa quando integram uma construção intransitiva que tem apenas sujeito (que correspond...

Pergunta:

Na frase «É conhecida dos historiadores a ação desencadeada pela Companhia de Jesus para obter o monopólio, o controlo total do ensino, quer normal quer universitário», a conjunção quer... quer pode ter sentido de adição além de alternância?

Resposta:

No contexto apresentado, quer…quer é uma conjunção coordenativa correlativa, que pode ser usada com diferentes valores dominantes:  

 (i) valor de disjunção exclusiva, que indica a seleção obrigatória de um dos elementos coordenados, equivalente a ou…ou:

(1) «Quer vá à aula, quer não vá, tem de saber a matéria.»

(ii) valor de disjunção inclusiva, através da qual «o falante admite a possibilidade de que apenas um dos termos da coordenação satisfaça a proposição expressa pela frase, mas não fica excluída a possibilidade de ambos os termos satisfazerem a proposição» (Matos e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1796):

(2) «O trabalho pode ser apresentado quer pelo João quer pela Maria.»

Ou seja, afirma-se que pode ser o João a apresentar o trabalho, pode ser a Maria a apresentar o trabalhar ou este poderá ser apresentado por ambos;

(iii) valor de adição, equivalente à locução não só… mas também:

Vírgula sim!
Situações em que a vírgula deve ser usada

Regressando ao tema da vírgula, Carla Marques apresenta um conjunto de situações em que a vírgula deve ser usada. 

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintática do pronome pessoal me na frase: «... adapto-me às opiniões provisórias dos outros.»

Penso que seja complemento direto, mas não tenho certeza.

Muito obrigada.

Resposta:

O pronome me desempenha na frase a função sintática de complemento direto.

No caso em apreço, o verbo adaptar é usado pronominalmente, sendo o pronome se uma forma reflexa, como se verifica pela possibilidade de ser seguido da forma forte «a si próprio»:

(1) «O João adaptou-se (a si próprio) à nova realidade.»1

Embora sintaticamente este teste pareça produzir um resultado algo incomum para a sintaxe do português, do ponto de vista semântico «o referente designado pelo antecedente e pela expressão reflexa participa numa situação na qual tem simultaneamente dois papéis diferentes i.e., realiza uma ação que incide sobre ele próprio, na qual é simultaneamente, p.e., agente e paciente» (Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2211).

Por outro lado, os usos do verbo adaptar na forma não pronominal colocam em evidência a função sintática desempenhada pelos pronomes me se, como se pode ver pelo cotejo entre os constituintes com função de complemento direto em (2) e (3) e os pronomes, também com função de complemento direto, em (4) e (5):

(2) «O João adaptou o fato à situação.»

(3) «O João adaptou a sua forma de ser ao novo emprego.»

(4) «O João adaptou-se às opiniões dos outros.»

(5) «Eu adaptei-me às opiniões dos outros.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. os t...