Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Deparei-me com esta frase e gostaria de saber se a mesma é aceitável: «Ele questionou-se como foi possível tal atitude.»

Resposta:

Nos dicionários consultados, apenas está prevista a construção do verbo pronominal questionar-se com a regência da preposição sobre seguida de um grupo nominal:

(1) «Questionava-se sobre a carreira a seguir.» (Dicionário Houaiss)

No Corpus do Português, de Mark Davies, confirma-se também a preferência por esta construção, surgindo também a alternativa com acerca:

(2) «[...] 69% questionam-se acerca da possibilidade de manutenção ou não de acordos de comércio internacionais» (Jornal Económico)

Deste modo, consideramos que a frase apresentada pelo consulente seria mais aceitável com a seguinte forma:

(3) «Ele questionou-se sobre a razão de tal atitude.»

Identificamos, no referido Corpus do Português, de Mark Davies, algumas frases em que o verbo na forma não pronominal, questionar, tem como argumento um complemento que é introduzido pelo advérbio interrogativo como:

(4) «À luz desses padrões que definem a gravidez e a AIDS é que comecei a questionar como seria o cotidiano de mulheres grávidas […]» (Mirian Santos Paiva, Vivenciando a gravidez […])

Note-se, porém, que, neste caso, o advérbio como não é pedido pelo verbo questionar, pois trata-se de uma estrutura interna à construção da interrogativa indireta que funciona como complemento direto de questionar.

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Pergunta:

Fiz diversas leituras (inclusive aqui), porém nada sanou a minha dúvida. Peço aos senhores um esclarecimento ou apenas uma referência para eu consultar.

O adjunto adverbial e a oração adverbial possuem o mesmo papel: modificador. Há autores até que chamam de adjunto adverbial em forma de oração (as orações adverbiais), até aqui, tudo bem! mas... quando vamos à pontuação que é o problema!

Os adjuntos adverbiais no final não são separados dos termos anteriores, as orações adverbiais também deveriam seguir a mesma Regra: "Não veste com luxo porque o tio não era rico." (Machado de Assis, OC, II, 204.)

Porém... A vida não é feita apenas de momentos bons: "Ceamos à lareira, que a noite estava fria." (A. Ribeiro, M, 44.)

Qual motivo das orações adverbiais na forma direta (após a principal), ora estão com vírgula, ora não?

Resposta:

O caso particular apresentado pelo consulente está relacionado com a colocação da vírgula no caso das orações subordinadas adverbiais causais e das orações coordenadas explicativas.

Em geral, podemos afirmar que, no âmbito das orações subordinadas adverbiais causais,

(i) a vírgula é usada quando a oração subordinada é colocada antes da subordinante:

                (1) «Dado que a comida chegou, vamos almoçar.»

(ii) a vírgula é usada também nas situações em que a oração subordinada intercala a subordinante:

                (2) «O João, porque se apercebeu da gravidade da situação, chamou os amigos.»

(iii) a vírgula é facultativa quando a oração subordinada adverbial causal é colocada após a subordinante:

                (3) «O João chamou os amigos(,) porque se apercebeu da gravidade da situação.»

A opção de colocação da vírgula poderá, por exemplo, estar relacionada com uma intenção de focalizar a causa ou com a existência de uma relação mais frouxa entre a causa e a situação expressa na subordinante.

As frases apresentadas pelo consulente convocam ainda outra questão: a distinção entre orações coordenadas explicativas (doravante, designadas como explicativas) e orações subordinadas adverbiais causais (doravante, causais). Assim, as causais apresentam uma causa real para a situação descrita na subordinante:

(4) «Não veste com luxo porque o tio não er...

Pergunta:

Quando nos referimos a uma mulher que esteve entre os vencedores de uma prova, que envolveu participantes femininos e masculinos, será correcto1 dizer: «Maria é uma das vencedoras»?

 

1. A consulente usa a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 90.

Resposta:

A frase correta será «Maria é um dos vencedores».

Em português, o plural tem a capacidade de se referir a pessoas de ambos os géneros, enquanto o feminino faz referência apenas a pessoa do género feminino.

Assim, se se optar pela frase:

(1) «Maria é uma das vencedoras.»

estamos a identificar apenas participantes do género feminino.

Se pretendermos referir participantes de ambos os géneros, teremos de optar pela forma masculina, como em (2):

(2) «Maria é um dos vencedores.»

que implica que Maria integra um grupo de vencedores composto por pessoas do género masculino e feminino.

 

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a função sintática desempenhada pelo segmento «cristal e flores» na frase: «jovem Adónis feito de cristal e flores»?

Obrigada!

Resposta:

O constituinte «de cristal e flores» desempenha a função sintática de complemento do adjetivo.

Feito é um adjetivo que incide sobre o nome Adónis, formado a partir do partícipio do verbo fazer, e que pede complemento regido pela preposição de, ou seja, este adjetivo precisa de um constituinte que lhe complete o sentido. Neste caso, o adjetivo tem o sentido de «que é constituído por alguma coisa» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea), como se verifica nas frases seguintes:

(1) «Conheceu uma felicidade feita de pequenos momentos.»

(2) «Comprou uma mesa feita de madeira e pedra.»

 

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «A Ana pousou o livro em cima da secretária», «em cima da secretária» é complemento oblíquo ou modificador.

Obrigada pela atenção.

Resposta:

O constituinte «em cima da secretária» desempenha, na frase em questão, a função sintática de complemento oblíquo.

Na frase apresentada, o verbo pousar é usado como transitivo direto e indireto («pousar alguma coisa nalgum sítio»). Neste caso, tem, portanto, como argumentos um complemento direto («o livro») e um complemento oblíquo («em cima da secretária»), introduzido pela preposição em.

Estamos, no entanto, perante um caso especial de complemento oblíquo, uma vez que a frase se mantém gramatical se este constituinte for eliminado:

(1) «A Ana pousou o livro.»

Se aplicarmos o teste de identificação do complemento oblíquo1, que nos indica que o complemento oblíquo não pode surgir numa interrogativa do género «O que é que SU fez OBL?/O que é que aconteceu a SU OBL?», verificamos que o constituinte «em cima da secretária» não pode surgir na questão, sendo também a resposta a esta questão agramatical:

(2) «*O que é que a Ana fez em cima da secretária? – Colocou o livro»

(3) «*O que é que aconteceu à Ana em cima da secretária? – Colocou o livro»

Não restam, portanto, dúvidas de que estamos perante um constituinte com a função de complemento oblíquo, que, no entanto, pode ser suprimido. Julgamos que o comportamento sintático aqui identificado se enquadra no plano dos argumentos obrigatórios (que não poderão ser omitidos da frase sob pena de agramaticalidade) e dos argumentos opcionais (que são argumentos dos verbos que poderão ser omitidos)2, constituindo, neste domínio de análise, um complemento oblíquo opcional.

Este é, contudo, um plano de análise que exige alguma maturidade, pelo que n...