Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Elas prestam atenção a tudo», o constituinte «a tudo» é um complemento oblíquo, um complemento indireto ou um complemento do nome?

Resposta:

O constituinte «a tudo» desempenha a função sintática de complemento indireto.

A frase apresentada tem a particularidade de incluir um predicador complexo, constituído por um verbo leve1 (ou de suporte) e um constituinte nominal, «atenção». Esta expressão caracteriza-se inclusive por um certo grau de cristalização.

Embora prestar funcione como verbo leve, não deixa de manter as propriedades de seleção argumental características do verbo pleno2, pelo que, na frase (1), o constituinte «a tudo» tem a função de complemento indireto, tal como o terá o constituinte «ao João e ao António» na frase (2) ou «ao programa de televisão», na frase (3):

(1) «Elas prestam atenção a tudo.»

(2) «Elas prestam atenção ao João e ao António.»

(3) «Elas prestam atenção ao programa de televisão.»

Os constituintes «ao João e ao António» e «ao programa de televisão» podem ser substituídos pelo pronome lhe(s):

(2a) «Elas prestam-lhes atenção.»

(3a) «Elas prestam-lhe atenção.»

Na frase (1), a substituição do pronome tudo pelo pronome lhe produz um resultado estranho, que se deve à semântica de tudo e ao facto de estarmos a substituir um pronome por outro. Não obstante, o princípio sintático que nos diz que num mesmo espaço sintático o constituinte desempenha sempre a mesma função sintática aponta para o facto de «a tudo» ter a função de complemento indireto.

Disponha sempre!

 

...

Pergunta:

Na frase abaixo, qual advérbio melhor se emprega: onde ou aonde?

«Pela vida de Javé, teu Deus, não há nação nem reino aonde (onde) meu amo não tenha mandado te procurar (...)»

Obrigado.

Resposta:

A oração em análise pode ser introduzida por onde  ou por aonde.

O uso de preposições antes das palavras que introduzem as orações relativas está diretamente relacionado com as regências dos verbos das orações que estas palavras introduzem. Atentemos nas frases (1) e (2):

(1) «Ele comprou-me este livro.»

(2) «Eu gosto muito deste livro.» 

Se pretendermos unir as frases, de modo a formar uma frase complexa, o resultado seria o que se observa em (3):

(3) «Ele comprou-me este livro de que gosto muito.»

A presença da preposição antes do pronome relativo que deve-se ao facto de o verbo gostar reger a preposição de.

Se atentarmos na frase apresentada pelo consulente:

(4) «Pela vida de Javé, teu Deus, não há nação nem reino aonde / onde meu amo não tenha mandado te procurar (...)»

verificamos que ela inclui uma oração relativa que pode corresponder a duas frases simples distintas (omitimos a negação para facilitar a análise):

(5) «O meu amo mandou-te procurar em todas as nações e reinos.»

(6) «O meu amo mandou (alguém) a todas as nações e reinos procurar-te.»&#x...

Pergunta:

Precisei de preparar este conteúdo gramatical (aspeto verbal) e as explicações encontradas para definir o aspeto iterativo e o habitual deixaram-me muito confusa, dadas as suas semelhanças.

Haverá algum modo simples e claro de os diferenciar?

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Tanto o aspeto habitual como o iterativo estão relacionados com o tipo de repetição da situação expressa na frase.

Assim, o aspeto iterativo corresponde a uma situação que se repete num intervalo temporal delimitado, sendo «o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1, como acontece em:

(1) «O João correu durante uma semana.»

(2) «Enquanto andou na escola, o João ia à biblioteca ao final do dia.»

O aspeto habitual descreve a situação como tendo tipicamente um padrão de repetição. Os tempos verbais são comummente o presente e o imperfeito do indicativo e os enunciados que descrevem uma situação como habitual admitem o uso de advérbio habitualmente (que não é compatível com as fases (1) e (2):

(3) «O João lê o jornal (habitualmente).»

(4) «O Manuel come sopa (habitualmente).»

Advérbios ou locuções adverbiais como «todos os dia...

Pergunta:

Tenho uma pergunta em relação ao uso do particípio passado, quando este funciona como modificador da frase, por exemplo:

(0) Atropelada pelo carro, aquela mulher caiu ao chão.

A minha pergunta é se as seguintes 2 frases são ambas corretas ou não e porquê?

(1) Chegados a casa, os colegas começaram a ajudar a Ana a preparar a festa.

(2) Chegada a casa, os colegas começaram a ajudar a Ana a preparar a festa.

No caso de a frase (2) não estar correta, é porque o particípio passado do verbo ‘chegar’ só se pode modificar o sujeito da frase principal, neste caso, ‘os colegas’? Então, porque é que a outra frase (3) está correta?

(3) Conferidos por duas pessoas, não deve haver mais erros nos dados.

Na frase (3), ‘conferido’ modifica ‘os dados’ que não funcionam como sujeito na frase principal.

Aguardo pela resposta e agradeço imenso!

Resposta:

As orações subordinadas não finitas participais (doravante, orações participiais) seguem um conjunto de regras de concordância que importa rever para analisar as situações apresentadas pela consulente.

Para proceder a esta análise, deve considerar-se a frase ativa com a qual se relaciona a oração participial e o tipo de verbo presente na oração participial.

I. Orações participiais com verbos transitivos

A frase ativa em (1) relaciona-se com as orações participiais (2) e (3), mas não com a (4):

(1) «A rapariga ofereceu três livros.»

(2) «Oferecidos pela rapariga, os três livros foram catalogados.»

(3) «Oferecidos os três livros, a rapariga sentiu-se feliz.»

(4) «*Oferecida a rapariga, os três livros foram catalogados1

Na frase (1), «a rapariga» é sujeito e «três livros» complemento di...

Pergunta:

Poderíeis analisar, para mim, a seguinte construção?

«Eis quanto me liga ao mundo.»

 

Obrigado.

Resposta:

Eis é considerado tradicionalmente um advérbio com valor de designação. Todavia, Celso CunhaLindley Cintra afastam-se desta classificação ao incluí-lo entre as palavras denotativas, referido que há «certas palavras, por vezes enquadradas impropriamente entre os advérbios, [que] passaram a ter, com a Nomenclatura Gramatical Brasileira, classificação à parte, mas sem nome especial» (Nova Gramática do Português Contemporâneo. p. 548). Em consonância com esta posição, Bechara  refere que «a Nomenclatura Gramatical ...