Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintática desempenhada pelo pronome relativo que no verso «Gato que brincas na rua». Penso que tu será o sujeito nulo subentendido de «brincas».

Obrigada.

Resposta:

O pronome relativo que desempenha a função sintática de sujeito.

O verso em questão integra um poema de Fernando Pessoa, cuja primeira estrofe corresponde a uma frase:

«Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.»

Analisando a frase, percebemos que os versos «Gato que brincas na rua / Como se fosse na cama» desempenham a função sintática de vocativo. Trata-se de um vocativo mais complexo do que é habitual. Para compreendermos o seu funcionamento, é importante recordar que

(i) o vocativo se relaciona com a segunda pessoa, pois cumpre uma função apelativa que visa chamar alguém ou colocá-lo em evidência:

            (1) «Manuel, (tu) vens comigo?»

(ii) o vocativo pode admitir expansões que podem corresponder a orações relativas. Bechara apresenta como exemplo desta possibilidade a frase:

            (2) «Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Senhor Deus, que após a noite
Mandas a luz do arrebol,
Que vestes a esfarrapada
Com o manto rico do sol”. [CAv.1, 88]» (Moderna gramática portuguesa. Nova Fronteira, p. 380).

Pergunta:

Muitas dúvidas me coloca a palavra “donde”. Usada como sinónimo de “daí”, “do que se conclui”, deve ou não ter vírgula a seguir? E o verbo, como fica?

Podem esclarecer-me através dos exemplos seguintes, por favor?

1. Os fenómenos deterministas ou causais caraterizam-se pelo facto de os efeitos serem consequências de causas, donde, conhecidas as causas, conhecem-seconhecerem-se também os efeitos.

2. Os fenómenos aleatórios caracterizam-se pela incerteza que envolvem, donde não é / ser possível determinar antecipadamente os resultados das experiências individuais. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

3. A classificação dos acontecimentos (…) é um tanto subjetiva na medida em que depende da avaliação de cada pessoa, donde esta categorização dos acontecimentos deve / dever ser vista como uma aproximação. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

4. Temos que 18÷6=3 e 24÷6=4. Donde, os números 3 e 4 são / serem primos entre si. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

5. Os ângulos A e B não têm apenas um lado em comum, pois o ângulo A está contido no ângulo B, donde não são / serem adjacentes. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

6. Donde, adicionando as frequências absolutas correspondentes às idades de 13 e 14 anos, tem-se / ter-se: 10 + 5 = 15 alunos.

7. Quando giramos a roleta, o ponteiro pode parar em cada um dos seus números, mas não sabemos antecipadamente qual desses números assinalará. Donde, trata-se/ tratar-se de uma experiência aleatória. (Com ou s...

Resposta:

A forma contraída donde (preposição de e advérbio onde) é usada

(i) sobretudo com valor locativo, como em

(1) «A casa donde veio ficava distante.»

(ii) frequentemente como interrogativo:

(2) «Donde vieste?»

(iii) com um valor equivalente a “daí”:

(3) «Tem tido muitos problemas, donde as reações que se lhe conhecem.» 

Note-se, porém, que uma análise às ocorrências desta forma no Corpus do Português de Mark Davies mostra que os usos de donde com um valor equivalente ao referido em (iii) é pouco frequente.

Este último uso gera principalmente orações resultativas (ou consequenciais), nas quais a causa é dada na oração principal e o resultado na oração subordinada.

Este conector pode ligar duas orações (4) ou uma oração a um sintagma nominal (5):

(4) «Ele não falava com ninguém, donde muitos não saberem sequer o seu nome.»

(5) «Ele era muito bem-disposto, donde a sua popularidade.»

No que respeita à pontuação, visto que estamos perante uma situação de orações periféricas, ou seja, que mantêm um grau de integração mais fraca na frase é aconselhado o uso da vírgula em início de oração: «As orações subordinadas periféricas distinguem-se das orações integradas por se destacarem do resto da frase através de uma pausa ou quebra entoacional, assinalada ti...

Pergunta:

Mais uma vez recorro [ao Ciberdúvidas] para saber se esta frase está certa ou errada:

«Todos ficarão alertas, embora haja menos greves.»

Grato.

Resposta:

Se alerta estiver a ser utilizado como um adjetivo, a frase é possível, embora do ponto de vista normativo alguns gramáticos não a considerem aceitável.

A palavra alerta pode ser usada como adjetivo qualificativo com o sentido de «que está vigilante, atento» (Dicionário Houaiss). Neste caso, a palavra flexiona em número e pode

(i) incidir sobre um nome: «pessoas alertas»;

(ii) surgir em posição predicativa: «Eles ficaram alertas».

A palavra alerta pode também ser usada como advérbio com o sentido de «com vigilância, atentamente», como em (1) ou (2):

(1) «Eles mantêm-se alerta.»

(2) «Fiquem alerta a comportamento estranhos.»

Neste uso, a palavra é invariável.

Deste modo, a correção da frase apresentada depende da classe de palavras que estiver a ser mobilizada.

Recorde-se, todavia, que alguns gramáticos condenam o uso de alerta como adjetivo. É o caso de Evanildo Bechara, que afirma: «Notemos, por fim, que alerta é rigorosamente um advérbio e, assim, não aparece flexionado: Estamos todos alerta. Há uma tendência para se usar desta palavra como adjetivo, mas a língua padrão recomenda se evite tal prática.» (in Moderna Gramática Portuguesa. Nova Fronteira, p. 449)

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<i>Maléfica: Mestre do Mal</i>
A assunção de um mundo feminino sem maldade ou um erro gramatical?

No título Maléfica: Mestre do Malnovo filme da Disney, a opção pela forma mestre oferece sérias dúvidas. Tratar-se-á de um erro ou podemos imaginar intenções "maléficas"? 

Pergunta:

Desde já agradeço a atenção e louvo o excelente trabalho prestado.

Na frase «Ele esforça-se para obter resultados», devemos classificar a oração subordinada como adverbial final ou podemos considerá-la uma substantiva completiva, uma vez que parece ser argumento do verbo esforçar-se.

Muito obrigada

Resposta:

A oração em questão é uma subordinada substantiva completiva.

Para identificarmos uma oração em casos similares ao apresentado, teremos de determinar se estamos perante:

(i) um verbo que rege uma preposição, formando com ela um predicador complexo1:

                (1) «Eu gosto de estudar sozinha.»

(ii) um verbo acompanhado por uma oração subordinada, introduzida por uma dada conjunção:

                 (2) «Ele estudou muito para passar de ano.»

No caso em apreço, o verbo esforçar(-se) tem um uso transitivo indireto, podendo reger as preposições para ou por2. Deste modo, a frase apresentada é formada por uma oração subordinante, «Ele esforça-se», e por uma oração subordinada completiva (não finita), «para obter resultados».

 

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras iniciais, que muito nos estimulam.

 

1. Nesta situação, o predicador complexo é um constituinte formado pelo verbo e pela preposição que este rege (cf. Barbosa in Raposo