Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho dúvida sobre o tipo de modalidade presente nos seguintes enunciados:

1. A cor da parede é bonita.

2. É inaceitável defender a escravatura.

É epistémica com valor de certeza ou apreciativa e porquê?

Muito obrigada pela vossa ajuda.

Resposta:

A primeira frase configura a modalidade epistémica com valor de certeza, e a segunda frase, a modalidade apreciativa.

A modalidade epistémica traduz o valor de certeza do falante relativamente ao seu enunciado1. Assim, a frase apresentada em (1) evidencia que o falante produz uma afirmação de cuja verdade está certo, pelo que a modalidade tem um valor de certeza:

(1) «A cor da parede é bonita.»

Esta frase poderia ter um valor de probabilidade se o locutor utilizasse, por exemplo, a locução «ser capaz de», que mostraria que ele não se compromete com a verdade da proposição:

(2) «A cor da parede é capaz de ser bonita.»

Por seu turno, a modalidade apreciativa incide sobre um enunciado tido como verdadeiro, sobre o qual o locutor emite um juízo de valor, positivo ou negativo, como acontece em (3):

(3) «Felizmente, está a chover.»

Nesta frase, o advérbio felizmente traduz a apreciação positiva do locutor relativamente à situação descrita em «estar a chover», que se apresenta como verdadeira.

Na frase apresentada pela consulente, o locutor exprime também o seu juízo de valor / a sua apreciação de rejeição de uma situação dada como verdadeira, «defender a escravatura»:

(4) «É inaceitável defender a escravatura.»

Disponha sempre!

 

1. Num co...

Pergunta:

«Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque os lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.»

O trecho acima foi pinçado do extraordinário conto "Entre Santos", do não menos extraordinário Machado de Assis (1839-1908).

O período todo proporcionaria uma alentada aula de sintaxe, mas me atenho somente à oração «quanto que teria deixado lugares escuros». Como analisá-la sintaticamente?

Muito obrigado.

Resposta:

O enunciado apresentado é caracterizado por alguma densidade que dificulta o seu processamento. Não obstante, julgamos «quanto que teria deixado alguns lugares escuros» constitui uma oração adverbial proporcional. Estas orações caracterizam-se por serem construções onde se «confrontam graus de intensidade de duas propriedades […] ou quantidade de duas entidades referidas» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 765-766). 

Estas construções podem ser introduzidas por conjunções / locuções conjuncionais correlativas, tais como quanto mais… (tanto) mais, quanto mais… (tanto) menos, tanto mais... quanto mais, tanto mais... quanto menos, tanto menos... quanto mais

Vírgula não!
Situações em que a vírgula não deve ser usada

A vírgula é um dos sinais gráficos que mais dúvidas oferece. Neste apontamento, Carla Marques recorda algumas situações em que a vírgula não deve ser usada. 

Pergunta:

Na frase «mas repetem-se incessantemente», incessantemente é um advérbio com valor semântico de modo ou de tempo?

Resposta:

Sem outro contexto que condicione o seu valor, incessantemente é um advérbio de tempo que exprime a duração de uma situação. Este advérbio responde à questão «durante quanto tempo?»:

(1) «Durante quanto tempo (as situações) se repetem?» - «Repetem-se incessantemente.»

Este contexto mostra que o advérbio coloca a tónica no valor aspetual durativo da ação, da qual se diz ter lugar de modo ininterrupto.

É possível, não obstante, atribuir uma leitura modal ao advérbio incessantemente. Num contexto como o apresentado em (2):

(2) «O João repetia aquele passo da música incessantemente.»

Neste caso, a intenção do locutor pode estar centrada na forma como o sujeito executa a ação. Neste caso, o advérbio admitirá uma paráfrase com o nome modo:

(3) «O João repetia aquele passo da música de modo incessante.»

e responde a uma pergunta com o advérbio interrogativo como:

(4) «Como repetia o João aquele passo de música?» - «Incessantemente.»

Assim, neste caso, o advérbio caracteriza a forma como o sujeito pratica a ação expressa pelo ...

Pergunta:

A seguinte construção frasal está gramaticalmente correta?

«Essas funções, com formas ainda desconhecidas, são combinadas aos campos B e Q, respectivamente, tal que as seguintes identidades são construídas:[...].»

Ou seria, «Essas funções, com formas ainda desconhecidas, são combinadas aos campos B e Q, respectivamente, tais que as seguintes identidades são construídas:[...]»?

Resposta:

O facto de a frase apresentada pelo consulente estar incompleta dificulta um pouco a compreensão do enunciado. No entanto, julgamos estar em presença de uma oração resultativa (ou consequencial)2, que se caracteriza por expressar o resultado ou a consequência da situação descrita na oração subordinante:

(1) «Ele coordenou estudo e trabalho, de forma que/tal que passou de ano.»

A conexão entre as duas orações da frase em questão é assegurada pela locução conjuncional tal que, que é invariável, pelo que, entre as frases apresentadas pelo consulente, a correta será:

(2) «Essas funções, com formas ainda desconhecidas, são combinadas aos campos B e Q, respectivamente, tal que as seguintes identidades são construídas: [...]"

Note-se, por fim, que esta locução conjuncional parece ser utilizada preferencialmente em textos de domínio técnico e científico, como se pode observar nos exemplos extraídos do CRPC (Corpus de Referência do Português Contemporâneo):

(3) «Sob o nome de divisão vectorial tratamos o problema seguinte: dados os vectores a e b, determinar um vector u tal que e, pela identidade de Lagrange, seja um vector da forma lower_than >.» (Alves, Mecânica Geral)

(4) «Constrói um quadrado [ EFGH ], tal que o comprimento de cada um dos seus lados seja 3 cm.» (Armelim e Morla, Aprender Matemática 1.)

 

Disponha sempre!

 

1. Cf. Lobo, in Raposo, Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2014-2015.

2. No quadro de uma abordagem no âmbito do ensino não superior, esta oração poderi...