Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A frase «não sabia que tenho uma amendoeira no quintal» está correta? A coesão temporal não apresenta dúvidas?

Fui corrigida, porque a forma verbal tenho deveria estar no passado.

Obrigada

Resposta:

A combinação do imperfeito com o presente do indicativo na frase apresentada é aceitável e justificável.

Antes de mais, recordemos que nem sempre o pretérito imperfeito do indicativo é usado para localizar uma situação no tempo. Na verdade, este tempo verbal pode ser usado com outros valores, entre os quais encontramos a expressão da modalidade epistémica. De forma mais concreta ainda, o pretérito imperfeito pode ser usado para exprimir uma opinião ou um julgamento, como se verifica no diálogo seguinte:

(1) A – O João plantou uma amendoeira no quintal.

      B – Eu sabia!

A intervenção de B tem como intenção veicular a ideia de que a sua opinião, que era já anterior ao momento de enunciação, é verdadeira. Veja-se que esta intenção é veiculada por meio da associação do verbo saber, um verbo epistémico (de conhecimento), ao imperfeito do indicativo1.

Ora, embora não tenhamos conhecimento do contexto em que foi proferida a frase apresentada pela consulente (o qual poderia alterar esta interpretação), podemos supor que ela tem a intenção de negar um saber que o locutor julgava possuir. Daí o recurso à forma «Não sabia». Neste caso concreto, a frase inclui ainda uma oração subordinada completiva («que tenho uma amendoeira no quintal»). Esta tem o seu verbo no presente do indicativo, o que se justifica, pois o recurso ao presente permite mostrar que a situação descrita pela oração completiva se verifica na realidade.

Note-se, por outro lado, que a frase apresentada em (2) é também possível:

(2) «Não sabia que tinha uma amendoeira no quintal.»

Neste caso, os valores poderão ser semelhantes aos descritos atrás, uma vez que o imperfeito também pode ser usado para descrever uma...

Pergunta:

Gostaria de saber qual seria a regência nominal correta para o predicativo intocável.

O correto seria «sentir-se intocável aos problemas do mundo» ou «sentir-se intocável pelos problemas do mundo»?

Desde já, com meus votos de estima e consideração ao trabalho inestimável prestado por vocês, meu muito obrigado.

Resposta:

Intocável é normalmente usado como adjetivo (e não um nome) com o valor de «em que não se pode tocar»; «que ou aquele que é inatacável, ilibado»: «que ou aquele que não pode ser objeto de nenhuma crítica (por ter muito prestígio), ou de nenhuma sanção (por ter as costas quentes)»1.

Normalmente, este adjetivo não é regido por nenhum complemento. Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra-nos um conjunto de situações em que intocável é usado sem recurso a complementos:

(1) «A biologia molecular era um domínio intocável.» Arrabal, 8 novembro 1997

(2) «Nos EUA, cresce o nível de insegurança das pessoas em relação aos chamados valores americanos. Ninguém hoje acredita, como acreditava em 1950, que os Estados Unidos são o melhor sistema do mundo, tem uma moralidade intocável, etc.» DaMatta, 4 maio 1997

No contexto apresentado, seria, desta forma, preferível optar por outras formulações, como por exemplo:

(3) «sentir-se imune aos problemas do mundo»

(4) «sentir que os problemas do mundo não o atingem»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

Pergunta:

Como se diz?

«Um pacote de biscoitos, de salsichas» ou «um pacote de biscoito, de salsicha»?

Na verdade, gostava de saber que regra é que determinava o plural nestes casos: «um pacote de bolachas», «um pacote de biscoitos»?

O plural dever-se-á ao facto de a preposição de equivaler à preposição com?

Muito obrigado!

Resposta:

Na verdade, a expressão «pacote de» constrói-se tanto com singular como com plural:

(1) «pacote de açúcar»

(2) «pacote de arroz»

(3) «pacote de bolachas»

(4) «pacote de biscoitos»

Este facto estará relacionado com a natureza semântica do próprio nome que integra o sintagma preposicional introduzido pela preposição de. Entre estes teremos de distinguir os nomes contáveis dos nomes não contáveis (massivos). Assim, os nomes contáveis são aqueles que podem ser contados, pelo que têm forma singular e plural e são compatíveis com quantificadores numerais:

(5) bolacha / bolachas; biscoito / biscoitos

(6) uma bolachas, duas bolachas… / um biscoito, dois biscoitos…

Já os nomes não contáveis (massivos) não têm plural e não são compatíveis com quantificadores numerais:

(7) açúcar / *açucares; arroz / *arrozes

(8) um açúcar, dois açucares… / um arroz, dois *arrozes…

Assim, se a expressão «pacote de» for combinada com nomes contáveis, far-se-á uso do plural, como em (3) e (4), indicando que no pacote existem várias bolachas ou biscoitos. Se for combinada com nomes massivos, far-se-á uso do singular, como em (1) e (2), porque estes nomes sinalizam a entidade que recebe esse nome.

Disponha sempre!

Pergunta:

A frase em questão é:

«Memórias de quem se emociona porque sabe o que é sem ela viver.»

A oração «(de) quem se emociona» desempenha a função de complemento do nome pela ligação estabelecida com o nome/grupo nominal «memórias».

A minha questão prende-se com a classificação da oração.

Sendo introduzida pelo pronome relativo (sem antecedente) quem deveria ser classificada como substantiva relativa; contudo, atendendo à função sintática que desempenha, deveria ser classificada como substantiva completiva uma vez que as substantivas relativas não desempenham, até onde sei, essa função sintática? E como podemos justificá-lo?

Obrigado.

Resposta:

A oração relativa em questão integra um sintagma preposicional que desempenha a função de complemento do nome memória.

O nome memória pode ser incluído numa estrutura possessiva, com a forma «artigo + memória + de + nome», como em (1):

(1) «A memória da Rita»

Neste caso, o sintagma preposicional «da Rita» tem a função de complemento do nome memória, o que se comprova pela possibilidade de reconstrução da relação possessiva com recurso ao verbo ter:

(1a) «A Rita tem uma memória»

Ora, a estrutura apresentada em (1) é equivalente a uma estrutura em que o nome que funciona como complemento da preposição de é substituído por uma oração substantiva:

(2) «A memória de quem se emociona»

Neste caso, é o grupo preposicional «de quem se emociona» que desempenha a função de complemento do nome. A oração subordinada substantiva relativa tem a função de complemento da preposição de, tal como acontece com o nome Rita em (1). Tal tem lugar porque as orações subordinadas substantivas relativas têm a capacidade de desempenhar as funções do nome.

Note-se, ainda, que a preposição de está associada ao nome memória, não fazendo parte da estrutura da oração relativa, por essa razão quando se substitui a oração por um nome a preposição não desaparece.

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual é a diferença entre igualdade e equidade? Em que contextos podem/devem ser usadas?

Grata pela atenção.

Resposta:

As palavras igualdade e equidade poderão, nalguns contextos mais informais, ser usadas como sinónimas. Todavia, os significados registados em dicionário apontam para que, num contexto mais rigoroso, se especializem os usos. Assim:

Equidade pode significar (i) «apreciação, julgamento justo»; (ii) «virtude de quem ou do que manifesta senso de justiça, imparcialidade»; (iii) «correção, lisura na maneira de proceder, julgar, opinião»1;

Igualdade tem como significados (i) «facto de não apresentar diferença quantitativa»; (ii) «facto de não apresentar diferença de qualidade ou de valor»; (iii) «princípio segundo o qual todos os homens estão submetidos à lei e gozam dos mesmos direitos e obrigações»1.

Por esta razão, nas frases seguintes, não se poderá substituir equidade por igualdade porque aquela mobiliza um sentido ligado à justiça ou àquilo que é justo:

(1) «Quem pede subsídio para o teatro bracarense? A equidade reclama-o.» Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo.

(2) «Estamos lutando a fim de assegurar a todos os mesmos cuidados e dividir com equidade os sacrifícios exigidos.» Folha, 1994.

De igual modo, nas frases seguintes, não se substituirá igualdade por equidade porque a primeira aponta para uma ideia de inexistência de diferença de qualidade ou de valor ou para o princípio dos mesmos direitos ou obrigações:

(3) «Ora esse rapaz, que partiu com tanta certeza e tanta força e que se chamava Rodrigo, sabia tudo por uma carta que lhe...