Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Dizemos «A mãe agarrou o menino» ou «A mãe agarrou no menino»? E porquê?

Muito obrigado!

Resposta:

As duas possibilidades são aceitáveis.

De acordo com Luft, no seu Dicionário Prático de Regência Verbal, o verbo agarrar pode ser usado como transitivo direto (1) ou como transitivo indireto, regendo a preposição em (2), com o significado de “prender; segurar com força e por violência”:

(1) «A mãe agarrou o menino.»

(2) «A mãe agarrou no menino»

Note-se que uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que os autores clássicos também vão usando uma ou outra possibilidade com o mesmo significado:

(i) verbo agarrar usado como transitivo direto:

(3) «[…] agarrou o papel em que escrevera a confissão, rasgou-o com a rapidez que pôde […]» Carlos de Oliveira, Casa na Duna.

(4) «Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o escrevente pela gola: - Está preso! rugia. Está preso!» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro.

(ii) verbo agarrar usado como transitivo indireto:

(5) «Agarrou no braço da Jeca e obrigou-a a caminhar mais devagar.» Abel Botelho, Fatal Dilema.

(6) «Agarrou no bule com as mãos trémulas […]» Eça de Queirós, ...

Pergunta:

A modalidade expressa na frase: «Nas imediações de Tarddert, sou acordado pelo frio dos picos do Alto Atlas», retirado do relato «Marrocos. Miragens», de Manuel João Ramos, é apreciativa ou epistémica com valor de certeza?

A dúvida surgiu pela dificuldade em saber se o frio é algo objetivo ou subjetivo. Por exemplo, para o narrador, a temperatura que faz nos picos do Alto Atlas é baixa, tendo este frio, mas para alguém que viva num local cujas temperaturas rondem as do lugar anteriormente referido pode não estar frio.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

A frase em questão veicula a modalidade epistémica com valor de certeza.

Por meio da modalidade epistémica, o locutor exprime o seu grau de certeza relativamente ao que afirma. Já a modalidade apreciativa permite ao locutor expressar uma apreciação sobre o conteúdo do seu enunciado.

Ora, na frase apresentada, o locutor afirma, com certeza, que é acordado pelo frio dos picos do Alto Atlas, não submetendo este facto a nenhum tipo de apreciação. Não poderemos considerar que a noção de frio seja uma apreciação. Poderá ser um conceito com algum grau de subjetividade, mas não expressa uma valoração sobre a realidade descrita. 

Por essa razão, estamos perante uma modalidade epistémica com valor de certeza.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Faço parte de uma ordem profissional que tem como categoria de membros: membros estagiários e membros honorários.

A questão é como se deve identificar alguém do sexo feminino: devo dizer «sou membro estagiário da Ordem» ou «sou membro estagiária da Ordem»? «Membro honorário da Ordem» ou «membro honorária»?

Muito obrigada!

Resposta:

A opção correta é «membro estagiário» ou «membro honorário».

A forma masculina de estagiário e de honorário deve-se ao processo de concordância. Uma vez que as palavras são adjetivos, concordam em género e número com o nome sobre o qual incidem, neste caso membro. Membro é um nome masculino que varia em número. Por essa razão são corretas as formas:

(1) «membro estagiário» / «membros estagiários»

(2) «membro honorário» / «membros honorários»

Poder-se-ia colocar a questão da existência de uma forma feminina para membro. Com efeito, existe a forma membra, que surge, no entanto, sinalizada no dicionário como uma forma pouco usada1. Não obstante, se se recorresse a esta forma, os adjetivos estagiário e honorário já teriam forma feminina:

(3) «membra estagiária» / «membras estagiárias»

(4) «membra honorária» / «membras honorárias»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Priberam em linha.

Pergunta:

Em uma caminhada despretensiosa pelas ruas de São Paulo, uma dúvida surgiu ao me deparar com uma placa.

Nas frases «sujeito à guincho» e «proibido estacionar» como podemos classificar o sujeito?

Resposta:

Os enunciados em apreço constituem orações reduzidas de particípio, que se caracterizam por ter um verbo no particípio.

Normalmente, estas orações surgem subordinadas a uma oração subordinante numa frase complexa:

(1) «Terminado o trabalho, o João foi descansar.»

No caso em apreço, estamos perante enunciados sintéticos que são usados em placas de sinalética. Não obstante, este enunciados mantêm algumas das características das orações reduzidas de particípio, como o facto de o sujeito aparecer à direita da formal verbal. É o que se verifica no enunciado transcrito em (2), no qual estacionar tem a função de sujeito (assim como na frase (1), «o trabalho» é sujeito de terminado):

(2) «Proibido estacionar»

No caso presente em (3), apenas se verbaliza o complemento oblíquo do verbo, estando o sujeito omisso:

(1)    «Sujeito a reboque»

Trata-se de uma construção equivalente a «O carro está sujeito a reboque» que é frequente no português europeu e que parece ser equivalente ao segundo enunciado aqui em análise.

Note-se, todavia, que o enunciado apresentado pelo consulente, que parece ser frequente no Brasil, tem uma incorreção: o uso da contração da preposição a com o artigo definido a:

Pergunta:

Na frase «Creio que todas as etapas da vida têm defeitos e virtudes e seria pouco sagaz defender em absoluto uma delas em detrimento de outras, nenhuma delas configura um período perfeito e idílico.» (Afonso Cruz, "Paralaxe, a crónica de Afonso Cruz", in Visão) ) está presente um ato ilocutório expressivo, declarativo, compromissivo ou assertivo?

Obrigada!

Resposta:

Na frase apresentada, poderemos identificar, pelo menos, dois atos ilocutórios assertivos.

Antes de mais, é importante observar que a frase abre com o verbo ilocutório1 crer. Ora, este verbo parece indicar, logo à partida, que a intenção do locutor passará por descrever uma dada situação, comprometendo-se com a verdade do enunciado apresentado2. Podemos confirmar que a frase apresentada em (1) apresenta as características básicas de uma asserção, através de uma sequência de enunciados que incide na sua verdade ou falsidade:

(1) A «– Creio que todas as etapas da vida têm defeitos e virtudes e seria pouco sagaz defender em absoluto uma delas em detrimento de outras.»

     B «– Sim, tens razão.»

     C «– Não, discordo.»

Note-se que se estivéssemos perante uma frase que configurasse um ato ilocutório compromissivo, por exemplo, esta sequência de enunciados já se revelaria inadequada:

(2) A «– Prometo que virei à festa.»

      B *«– Sim, tens razão.»

      C *«– Não, discordo.»

Relativamente à oração que termina a frase apresentada, esta poderá corresponder a um novo ato ilocutório. Neste caso, deverá existir uma pausa entre os dois atos ilocutórios, que a presença da vírgula já indicia. Esta oração poderia também constituir-se como uma frase independente, como em (3):

(3) «Creio que todas as etapas da vida têm defeitos e virtudes e seria pouco sagaz defender em absoluto uma delas...