Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
44K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Perguntava-vos se o nome pachorra, para além da preposição para, suporta a preposição de:

«Ele não tem pachorra de sair de casa.»

Obrigado.

Resposta:

É possível identificar vários casos de uso do nome pachorra, cujo uso aparece associado sobretudo a contextos mais informais, tanto com a preposição para como com a preposição de. Uma consulta ao Corpus do Português, de Mark Davies, mostra-nos que inclusive na literatura é possível assinalar os dois usos:

(1) «E inda por cima, tendo a pachorra de derrotá-lo!» (Álvaro Cardoso Gomes, Os Rios Inumeráveis.1997)

(2) «Teve a pachorra de contar os carros» (Machado de Assis, Memorial de Aires. 1908.)

(3) «Andava realmente impaciente, sem pachorra para aqueles treinos de campeonato.» (Miguel Torga A Criação do Mundo: O Terceiro Dia. 1948)

 (4) «e tu pachorra para escutá-lo, João.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, 1868)

Disponha sempre!

Pergunta:

Agradeço um esclarecimento sobre o valor do conetor por isso no seguinte contexto:

«Representamos as últimas gerações que ainda leem – somos uma espécie em vias de extinção. As tecnologias sem as quais já não vivemos, seja através dos conteúdos em streaming ou das aplicações que nos injetam dopamina no sistema nervoso, não foram concebidas para lhes resistirmos. Pelo contrário. Por isso, urge agir (…). As consequências no que respeita ao futuro das novas gerações já se anteveem.»

Será conclusivo ou causal? Não conseguimos chegar a um consenso.

Muito obrigada pela atenção e disponibilidade.

Resposta:

O valor de conexão ativado por «por isso»1 será, na frase em questão, o de conclusão.

Simplificamos aqui a frase apresentada para facilitar a analise:

(1)    «As tecnologias não foram concebidas para lhes resistirmos. Por isso, urge agir.»

Note-se que, caso estivéssemos perante um valor causal, seria possível substituir «por isso» pela conjunção porque, o que não é aceitável:

(2)    «*As tecnologias não foram concebidas para lhes resistirmos, porque urge agir.»

Esta inaceitabilidade justifica-se atendendo a que a situação descrita como «urgir agir» não é a causa que tem como consequência o facto de as tecnologias não ter sido concebidas para que se lhes resista.

É, no entanto, possível substituir «por isso» por consequentemente ou por logo, que expressam mais claramente este valor de consequência:

(3)    «As tecnologias não foram co...

Pergunta:

Sabendo de antemão que o uso do infinitivo é um terreno pantanoso que requer cuidado para trilhar, atrevo-me a concordar com a posição da consulente Inês Pantaleão, em 17/5/2022.

Em primeiro lugar, não creio que a frase apresentada por ela seja o caso típico de orações com sujeitos diferentes, a exemplo de «O professor mudou o método de ensino para os alunos aprenderem melhor».

A referida oração («os antibióticos perderam eficácia devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistirem...») é um pouco diferente, devendo-se verificar a necessidade de flexão do infinitivo no âmbito somente da oração subordinada («as bactérias têm a capacidade de resistir aos antibióticos»). Para que flexioná-lo, se o sujeito é o mesmo?

É frase semelhante a estas: «Todos tinham receio de enfrentar o tirano», «Nós vivemos da esperança de ver um mundo mais justo», «Não cobiçavam a glória de ficar em posição de destaque».

Outras de estrutura diferente, mas com sujeito único, também não exigem flexão do infinitivo: "Eles quiseram estar presentes à cerimônia", "Esperamos construir a casa em seis meses".

Nesse caso, vale a máxima de "Por que dizer com muito aquilo que pode ser dito com pouco?".

Resposta:

Note-se que a resposta dada aqui não foi apresentada como um caso normativo inequívoco, pois, como refere o consulente, os usos associados ao infinitivo nem sempre são claros ou únicos. A formulação da resposta poderá, eventualmente, não ter sido suficientemente clara.

Por vezes, o recurso ao infinitivo flexionado permite desfazer qualquer ambiguidade que a frase possa conter ou simplesmente enfatizar o sujeito da frase / oração.

Como a frase apresentada pela consulente envolve um conjunto de relações sintáticas mais complexas, o infinitivo pode contribuir para esclarecer a rede sintático-semântica.

Assim, devemos considerar o sujeito da oração subordinante (antibióticos), o nome capacidade, o pronome relativo que (que retoma capacidade) e o nome bactérias. Dentro da oração relativa, bactérias é o sujeito o verbo ter, mas é o nome capacidade que rege a oração subordinada infinitiva, como se observa na oração reconstruída:

(1) «As bactérias têm a capacidade de resistir(em) aos antibióticos.»

Como se afirmou, neste contexto, é legítimo recorrer ao infinitivo não flexionado (dito impessoal), mas também é possível recorrer ao infinitivo flexionado, que permitirá ajudar ao processamento da informação da frase, apontando como sujeito do verbo no infinito o nome bactérias e não, por absurdo, o complemento do verbo ter (neste caso, capacidade).

Disponha sempre!

Sansão e as sanções
Das palavras homófonas

A crónica da professora Carla Marques aborda a homofonia entre as palavras sanção e Sansão, numa altura em que as sanções contra a Rússia se encontram na ordem do dia. 

Pergunta:

Gostaria de saber se o comparativo de inferioridade de grande é «menos grande do que».

Confesso que nunca usaria esta construção. Diria «menor do que» ou substituiria o grande por pequeno. Gostaria que me dissessem se é correto. Apesar de ter encontrado esta construção num livro de gramática, parece-me pouco ou nada usual.

Obrigada

Resposta:

Numa perspetiva de uso formal da língua, o adjetivo grande não aceita integrar construções com o grau comparativo de inferioridade. 

O grau comparativo envolve a comparação do grau de uma dada propriedade entre duas entidades. Assim, na frase (1), a propriedade expressa pelo adjetivo rápido é comparada entre as entidades carro e bicicleta, atribuindo-se um grau maior a carro:

(1) «O carro é mais rápido que a bicicleta.»

Para que um adjetivo possa entrar numa estrutura comparativa desta natureza, terá de ser graduável. Por exemplo, um adjetivo como policial não é graduável, pelo que não integrará frases com uma estrutura comparativa:

(2) «*Este livro é mais policial do que aquele.»

O adjetivo grande significa «que tem dimensões maiores do que o habitual», «cuja extensão é maior do que a média» ou «que é maior do que aquilo que devia ser»1.

Ora, atendendo a esta significação, não será possível inserir o adjetivo grande numa frase que aponte para uma comparação de inferioridade porque esse processo entra em conflito com a própria significação do adjetivo que aponta para uma dimensão maior do que o normal2. Por esta razão, podemos usar o adjetivo grande apenas em construções de grau comparativo normal ou de grau comparativo de superioridade. Repare-se que, neste último caso, grande assume normalmente a forma maior, embora a construção «mais grande que» seja aceitável nalguns casos (como se explica nesta resposta).

Disponha sempre!