Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Causou-me estranheza parte dum texto com que me deparei hoje:

«Lisboa era visitada por gente de todo o mundo e para ela convergiam pessoas ilustres e foi difícil deixá-los de fora: embaixadores, aristocratas, pobres, prostitutas, amas, até um macaco. Não resisti a tornar todos eles personagens numa Lisboa protagonista absoluta.»

Não deveria ter sido usado o pronome clítico os em vez de eles como complemento do verbo tornar («torná-los todos personagens»)?

Aproveito o ensejo para parabenizar a equipe do Ciberduvidas pelo inestimável serviço que presta ao nosso querido idioma.

Resposta:

A forma apresentada está correta.

O quantificador todos pode combinar-se com o pronome pessoal de diferentes formas, colocando-se antes ou depois da forma pronominal, como se observa em (1) e (2):

(1) «Todos eles vieram à aula.»

(2) «Eles todos vieram à aula.»

Como é sabido, o pronome pessoal, quando tem a função de complemento direto, assume a forma o(s) / a(s), dita forma fraca (=clítico):

(3) «Encontrei-os na escola.»

Ora, se este complemento direto incluir uma quantificação operada por todos, o pronome pessoal terá de assumir a forma forte (eles), pois, como adverte Bechara, «O pronome ele, no português moderno, só aparece como objeto direto quando precedido de todo ou (adjetivo)»1:

(4) «Encontrei todos eles na escola.»

O quantificador todos pode ainda ser associado a uma construção de redobro do pronome, que corresponde a uma construção que repete o complemento direto com uma intenção enfática, como se observa em (5):

(5) «Encontrei-os a todos (eles).»

Por fim, a construção apresentada em (6) é também aceitável, sendo eventualmente uma opção sentida como menos normativa2, na medida em que corresponde à colocação do quantificador todos depois do pronome (como acontece em (2)), o que levará a que o pronome retome a sua forma fraca:

(6) «Encontrei-os todos na escola.»

Pelas razões expostas, a construção apresentada pelo cons...

Pergunta:

Na frase «Realizei o procedimento conforme as instruções», o constituinte conforme é preposição ou advérbio?

Caso seja preposição (por unir palavras que exercem funções sintáticas distintas: «procedimento» – núcleo do objeto direto; «instruções» – núcleo do adjunto adverbial), por que não poderia ser advérbio, visto que é palavra invariável que modifica o valor da forma verbal «realizei»?

Gostaria de saber também se realmente preposições são definidas como constituintes invariáveis que ligam palavras com funções sintáticas diversas, de acordo com o que supus no texto acima, e se está correta minha análise sintática em relação às palavras procedimento e instruções.

Grato mais uma vez.

Resposta:

De acordo com Raposo e Xavier, as «preposições são palavras invariáveis e geralmente monossilábicas, cuja função consiste em estabelecer uma relação sintática e semântica entre duas expressões». A primeira expressão será aquela que determina o aparecimento da preposição, que, por sua vez, vai determinar o aparecimento do elemento a constar no interior do grupo preposicional. Desta forma, na expressão apresentada em (1), fotografia é núcleo do grupo nominal e é o nome que exige a presença da preposição de. Esta preposição é o núcleo do grupo preposicional «da Rita», o qual exerce a função de complemento do nome (nominal):

(1) «A fotografia da Rita»

A palavra conforme pode ser usada como preposição, em contexto em que «marca[m] uma relação semântica de correlação ou de correspondência»2. Assim sendo, na frase apresentada pelo consulente, transcrita em (2), observamos a ação de conforme, que estabelece uma relação de correspondência entre o verbo realizar e o grupo nominal «as instruções»:

(2) «Realizei o procedimento conforme as instruções.»

Note-se, ainda, que no grupo preposicional, «conforme as instruções» se considera que o núcleo é a preposição conforme e não instruções, porque é aquela que determina o aparecimento do nome que a segue.

Por outro lado, conforme não poderá ser classificado como um advérbio, uma vez que a classe do advérbio não desempenha a função de estabelecer relações entre palavras/grupos de palavras, antes tem a função geral de veicular «informação de natureza circunstancial, semanticamente diversa, sobre a situação descrita por uma frase»3, entre outras funções.

Refira-se também que conforme poderá...

Pergunta:

Gostaria que me explicassem o uso dos demonstrativos nesse, neste e naquele em relação ao tempo. Seriam nesse e naquele referência ao passado e neste ao presente?

Nesse dia, eu estava doente.

Ela partiu a perna, naquele fim de semana.

Neste momento, eu não posso.

Ainda que a minha interpretação esteja correta, existe alguma diferença entre o nesse e naquele? Seria naquele para se referir a um passado mais longínquo? Essas mesmas interpretações de tempo servem para o desse, deste e daquele? Não consigo pensar em nenhuma frase que pudesse ter essa interpretação.

Caso esteja errada, poderiam dar-me alguns exemplos, por favor?

Agradeço a atenção dispensada.

Resposta:

De uma forma geral, os determinantes demonstrativos sinalizam proximidade de quem fala (eu), do ouvinte (tu) ou afastamento quer do eu quer do tu1:

(1) «Este livro» - livro próximo do eu

(2) «Esse livro» - livro próximo do tu

(3) «Aquele livro» - livro distante quer do eu quer do tu

Os demonstrativos podem também assumir um valor temporal quando ocorrem junto a nomes que denotam tempo, como hoje, ontem, dia, fim de semana, entre outros. Neste contexto, normalmente, o determinante este refere o intervalo de tempo, compreendido de forma mais ou menos alargada, em que o locutor fala:

(4) «Neste momento, estou no café.» (=agora)

Em (4), o momento referido coincide com o momento em que o locutor produz o enunciado.

Os demonstrativos podem ainda ser usados como anafóricos, retomando valores temporais já expressos na frase, como acontece em (5):

(5) «Nasci em 1980. Neste / Nesse / Naquele ano, choveu muito.»

Como se observa, no caso em apreço, qualquer dos demonstrativos poderá ser usado. No entanto, se o referente temporal referir uma situação futura, só se poderá usar esse:

(6) «Daqui a uma semana, termino o trabalho. Nesse dia, vou passear.»

Pelo exposto, nas frases apresentadas pela consulente, aqui transcritas, poderemos afirmar que na frase (7) o demonstrativo aponta para o momento em que o locutor (eu) fala, enquanto as frases (8) e (9) apontam para um intervalo de tempo anterior ao momento da fala.

(7) «Neste momento, eu não posso.»

(8) «Ela partiu a perna, naquele fim de semana.»

Pergunta:

Eu estava lendo um texto, e se me apresentou que a conjunção quando e as locuções conjuntivas «ainda quando» e «mesmo quando» podem ser usadas em orações subordinadas com valores concessivos.

Vocês poderiam destrinçar essa possibilidade de usos, em que quando é usado em orações temporais e é antecedida por mesmo ou por ainda

E também apresentar possíveis orações com essas três palavras, entre aspas, com valores concessivos?

Desde já, meu agradecimento.

Resposta:

Com efeito, tipicamente, a conjunção quando atribui um valor de nexo temporal à oração que introduz, como em (1):

(1) «O Rui saiu quando a Rita chegou.»

Esta mesma conjunção pode surgir nas locuções «ainda quando» e «mesmo quando», com um valor próximo do concessivo:

(2) «Os obstáculos, mesmo quando fossem muitos, não tiravam aos rapazes a certeza da vitória.»1

(3) «E, ainda quando as palavras não o digam, aí estão os fatos, para comprovar que só enunciei verdades.»1

As construções concessivas apresentadas em (2) e (3) assinalam a existência de uma situação que deveria impedir a situação descrita na subordinante, sem que, no entanto, tenha força para o fazer.

Note-se também que os usos patentes em (2) e (3) são considerados pouco eruditos. Por essa razão, muitos gramáticos, como é o caso de Cunha e Cintra2, não incluem estas locuções entre as que prototipicamente introduzem as orações concessivas.

Repare-se ainda que estas construções poderão também ficar associadas a um valor temporal vago e a um valor aditivo, que fica mais evidente quando se recorre ao modo indicativo na oração:

(4) Os obstáculos, mesmo quando são muitos, não tiram aos rapazes a certeza da vitória.»

Disponha sempre!

 

1. Exemplos adaptados de Bechara in Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 409.

2. Cf. Cunha e Cintra,

Pergunta:

No segmento «Destinada a alargar a um maior número de leitores a fruição destes tesouros da cultura medieval portuguesa…», o verbo alargar exige um completo oblíquo e um completo direto ou um complemento indireto e um complemento direto?

Muito obrigada!

Resposta:

No caso em apreço, o verbo alargar constrói-se com complemento direto e complemento oblíquo.

Se atentarmos na frase (1)

(1) «Ele alargou os benefícios a todos os habitantes.»

percebemos que o verbo tem como complemento direto o constituinte «os benefícios» e como complemento oblíquo o constituinte «a todos os habitantes».

A função sintática desempenhada por este último constituinte pode desencadear algumas dúvidas pelo facto de ele ser introduzido pela preposição a, o que o torna semelhante a um complemento indireto.

Esta questão poderá ver-se esclarecida, por um lado, pelo facto de o verbo alargar reger a preposição a (como pode reger também as preposições até e para) e, por outro, pelo comportamento sintático do constituinte. Para o testar, devemos saber que o complemento direto não pode ser substituído por um sintagma preposicional constituído por «preposição a + pronome pessoal forte», o que é possível, todavia, com um complemento oblíquo1. Vejamos as diferenças entre a aplicação do teste à frase (1) e à frase (2):

(1a) «Ele alargou os benefícios a eles.»

(2) «Ele deu benefícios aos habitantes.»

(2a) «*Ele deu benefícios a eles.»

Na frase (1), é possível substituir o constituinte «a todos os habitantes» por «a eles», ao passo que, na frase (2), não é possível substituir «aos habitantes» por «a eles». Estas diferenças justificam-se pelo facto de o constituinte da frase (1) ter a função de complemento oblíquo, enquanto o da frase (2) tem a função de complemento indireto.

Pelo exposto, é possível verificar que na frase apresentada o constituinte «a um maior número de leitores» t...