Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tendo em conta a frase:

«Estava a cozinhar uma feijoada, juntei o feijão na água, quando entra pela janela o mais belo pássaro....»

Qual a forma correta desta frase? Existem exemplos de frases onde a discordância verbal seja possível?

Resposta:

A frase apresentada está correta, constituindo a falta de concordância temporal um uso justificado.

Tipicamente, as orações subordinadas temporais introduzidas por quando contribuem para localizar a situação descrita na oração subordinante relativamente à situação descrita pela oração subordinada. A situação presente na subordinada pode, assim, ser descrita como simultânea, anterior ou posterior à da subordinante. De forma a exprimir estes valores, normalmente, verifica-se uma concordância temporal entre os tempos da subordinante e da subordinada. As situações descritas podem localizar-se no passado:

(1) «Quando eu cozinhava, o Rui chegou.»

(2) «Quando eu cozinhei, o Rui chegou.»

(3) «Quando eu cozinhava, o Rui chegava.»

Há situações em que quando permite quantificar situações, como acontece em (3) ou em (4):

(4) «Quando eu cozinho, o Rui chega.»

Todavia, de acordo com Lobo, «Algumas orações com quando têm uma função predominantemente narrativa, relatando uma situação episódica que interrompe uma outra situação de caráter mais prolongado».1 A autora apresenta como exemplo a frase que transcrevemos em (5):

(5) «O Capuchinho Vermelho passeava tranquilamente pela floresta, quando de repente aparece o lobo mau.»1

Ora, a frase apresentada pelo consulente enquadra-se nesta descrição, uma vez que a oração subordinada relata uma situação episódica num contexto narrativo, o que justifica o desrespeito pela tradicional concordância temporal.

Disponha sempre!

 

1. Lobo in Raposo et al.,

Pergunta:

Gostaria de saber qual o valor da modalidade epistémica configurado no seguinte excerto:

«... mas quero crer que nunca como agora se assistiu a uma geração que revelasse tão vasta quantidade de autoras.»

Muito obrigada.

Resposta:

Na verdade, a frase apresentada não configura a modalidade epistémica, mas antes a modalidade desiderativa ou volitiva.

Ao passo que a modalidade epistémica está relacionada com «graus de certeza ou avaliação de probabilidade acerca do conteúdo proposicional da frase»1, a modalidade desiderativa «expressa a volição ou o desejo»1. Assim, a frase (1) configura a expressão da modalidade epistémica, enquanto a frase (2) expressa a modalidade desiderativa:

(1) «Sei que o João não fez os trabalhos.»

(2) «Queria que o João fizesse os trabalhos.»

Deste modo, uma vez que na frase apresentada, o verbo da oração subordinante é querer, este enforma toda a frase com a expressão geral deste desejo do locutor.

Acrescente-se, noutro plano, que o verbo crer construído com um grupo preposicional introduzido por em normalmente configura uma modalidade epistémica com valor de certeza; mas, crer acompanhado do oração completiva já expressa alguma incerteza, pelo que configura a modalidade epistémica com valor de probabilidade2:

(3) «Creio em Deus.»

(4) «Creio que o João chega amanhã.»

Visto que na frase apresentada se combinam dois verbos modais, querer e crer, poderemos considerar que no interior da modalidade desiderativa se identifica uma modalidade epistémica com valor de possibilidade (que expressa algo como «eu desejo que isto possa ser desta forma (mas não é certo)»).

Não obstante, visto que a modalidade desiderativa não integra os programas do Ensino Secundário e dada a comple...

Pergunta:

Lendo um poema de Paulo Leminski, o título chamou minha atenção e causou dúvida.

Segue o título e o questionamento: «O assassino era o escriba.»

Como fica uma análise sintática desse período? E se invertemos os termos: «O escriba era o assassino»?

Como ficaria a análise?

Obrigado.

Resposta:

A frase copulativa apresentada é um caso de copulativa identificadora, que se caracteriza por «identifica[r] o indivíduo representado pelo sujeito como sendo o portador exclusivo da propriedade individual definida pelo SN predicativo.»1 As frases (1) e (2) são exemplo deste tipo de copulativas:

(1) «O João é o meu melhor amigo.»

(2) «Aquele senhor é o autor deste livro.»

Nas frases copulativas identificadoras, o predicativo do sujeito identifica o sujeito como sendo dotado de uma dada propriedade2. Assim em (1) identifica-se o João como tendo a propriedade de «ser meu amigo» e, em (2) identifica-se «aquele senhor» com a propriedade de «ser autor deste livro».

Ora, na frase apresentada pelo consulente, coloca-se um problema de referência. Visto que as copulativas identificadoras identificam o sujeito atribuindo-lhe uma propriedade, resta saber qual o sintagma nominal que se encontra na referência do leitor. Ou seja, até ao momento da identificação de quem se falou? De um assassino? Ou de um escriba? Só a resposta a esta questão permitirá encontrar a solução para a identificação das funções sintáticas dos constituintes, pois o predicativo do sujeito será a propriedade que se atribui à pessoa de que se fala («ele é o escriba» ou «ele é o assassino»).

Apelando ao nosso conhecimento do mundo, e sem outro contexto, diria que o mais expectável é que o grupo verbal «ser assassino» seja o constituinte predicativo, o que faria do «o escriba» sujeito e de «o assassino» predicativo do sujeito. No entanto, não dispomos de elementos que atestem a interpretação.

Convém ainda acrescentar que as orações copulativas poderão surgir na ordem canónica ou na ordem inversa, sem que tal altere a função sintática dos constituintes. Assim, em (3) e (4), as funções sintáticas não se alteram: «Nós»...

Guerra
Das palavras aos atos

conflito na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia abre caminho à palavra guerra, cuja origem e evolução se explora na crónica da professora Carla Marques

O léxico da guerra Rússia- Ucrânia
Topónimos, neologismos e outros

«O conflito entre a  Rússia e a Ucrânia  está não só a abalar o mundo como também, no caso português (e noutros não será diferente), a própria língua, que se vê na necessidade de referir novas realidades e de designar locais, pessoas ou acontecimentos respeitantes a realidades distantes e com pouca tradição de referência na língua», refere-se neste apontamento dos professores Carla Marques e Carlos Rocha dedicado a questões lexicais que emergem na língua a propósito da atualidade noticiosa em torno do diferendo entre os dois países.