Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradeceria muito se puderem explicar qual é a frase correta do conjunto abaixo;

«Nossa viagem depende se vai chover ou não.»

«Nossa viagem depende de se vai chover ou não.»

 

Resposta:

A opção correta é aquela em que o verbo rege a preposição de:

(1) «Nossa viagem depende de se vai chover ou não.»

O verbo depender rege a preposição de em construções em que significa «estar ligado» ou «estar na dependência de; envolver decisão ou resolução»1. Este último valor parece ser o que é mobilizado na frase apresentada.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Celso Luft, Dicionário Prático de Regência Nominal. Editora Ática, p. 172.

Pergunta:

Li, num livro, que o futuro normalmente está ligado a uma suposição e não a uma certeza, estando associado, por conseguinte, a uma probabilidade. Porém, o futuro não pode ser utilizado para expressar certeza?

Consideremos o seguinte enunciado: (I) Ele irá conseguir. Neste caso, (I) expressa uma certeza ou uma suposição?

E, agora, consideremos um enunciado semelhante: (II) Ele vai conseguir. Em (II), expressa certeza ou suposição?

O que me responderam foi que o (I) expressa suposição e o (II) certeza, devido ao tempo utilizado. Porém, em (II), o presente não adquire valor de futuro?

Agradeço a vossa preciosa ajuda para decifrar os mistérios da nossa tão vetusta e opulenta língua.

Resposta:

Com efeito, o futuro pode estar associado à expressão da modalidade epistémica com valor de probabilidade. Tal deve-se ao facto de o futuro referir uma situação que ainda não teve lugar, pelo que não será certo que venha efetivamente a ocorrer.

O valor de futuro pode ser expresso pela construção perifrástica formada pelo auxiliar ir seguido de verbo no infinitivo, como acontece nas frases apresentadas pelo consulente1. Esta construção localiza a situação descrita num momento posterior ao momento de enunciação (ou a um tempo de referência).

O tempo em que se conjuga o auxiliar ir pode contribuir para diferentes leituras modais:

(i) uma leitura modal com valor de probabilidade forte, quando o auxiliar é conjugado no presente do indicativo:

    (1) «Ele vai conseguir.»

(ii) uma leitura modal com valor de incerteza, quando o auxiliar surge no futuro do indicativo:

    (2) «Ele irá conseguir.»

Disponha sempre!

 

1. Note-se que um verbo conjugado no futuro não está no mesmo plano de uma construção perifrástica com valor de futuridade, pois o auxiliar desta última poderá não estar flexionado no futuro. Neste último caso, falamos apenas de valores temporais.

Pergunta:

Numa frase como «Ela está doente com gripe», se bem entendo, «com gripe» é um complemento do adjetivo.

A minha questão é: será, então, o predicativo do sujeito apenas «doente» ou será «doente com gripe», incluindo-se assim o complemento do adjetivo?

Muito obrigado.

Resposta:

As funções de complemento do adjetivo e de modificador do adjetivo funcionam no interior do sintagma adjetival e não no plano do sintagma verbal. Por essa razão, na frase apresentada, o constituinte «doente com gripe» desempenha uma função como um sintagma relativamente ao verbo copulativo.

Neste caso, a função sintática é a de predicativo do sujeito, como refere o consulente.

Disponha sempre!

Cortar
O verbo que tira

Dos significados de base do verbo cortar às expressões de que faz parte: este é o percurso da crónica da professora Carla Marques no programa Páginas de Português, transmitido pela Antena 2, no dia 17 de outubro de 2021.

Pergunta:

Na frase «Apresentou-me à Maria», o grupo preposicional «à Maria» desempenha a função de complemento indireto ou de complemento oblíquo?

Obrigada

Resposta:

O grupo preposicional «à Maria» desempenha na frase apresentada a função sintática de complemento indireto.

A dificuldade na identificação da função sintática deste constituinte pode estar relacionada com o facto de não ser possível substituir o grupo preposicional pelo pronome lhe, habitualmente usado como teste de identificação da função sintática de complemento indireto. Esta impossibilidade fica a dever-se à presença do pronome me na frase, pois os pronomes me, te, nos e vos, quando pospostos ao verbo e com função de complemento direto são incompatíveis com outros pronomes átonos1, o que impede construções como a que se apresenta em (1):

(1) «*Apresentou-me-lhe.»

Todavia, note-se que estes mesmos pronomes quando têm a função de complemento indireto já se compatibilizam com as formas de pronome pessoal de complemento direto:

(2) «Apresentou-lhe a Maria.» = «Apresentou-lha.»

(3) «Apresentou-me o António.» = «Apresentou-mo.»

Não obstante, para clarificar a análise da frase apresentada pela consulente, é sempre possível substituir o pronome me por um nome, como em (1):

(1) «Apresentou o João à Maria.»

Esta manipulação torna evidente que «o João» tem a função sintática de complemento direto, tendo «à Maria» a função de complemento indireto.

Disponha sempre!

 

*Assinala a agramaticalidade da construção.

1. Cf Cunha e Cintra,