Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
46K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como explicar a alguém que está a aprender português como segunda língua, que o verbo fazer não pode ser usado com o adjectivo grávida?

Estão correctas as frases «Ela engravidou», «Ele fez com que ela ficasse grávida» e ainda «Ela está grávida».

No entanto, está incorrecto dizer «Ele vai fazê-la grávida», o que o aluno não compreende, porque conhece a expressão «Ele vai fazê-la feliz».

Resposta:

Nem sempre as combinações entre verbos e palavras de outras classes estão disponíveis na língua. Tal pode acontecer por variadíssimas razões.

No caso da expressão «fazer feliz», o verbo fazer é usado com um sentido causativo e forma com feliz uma oração pequena na qual se podia introduzir um verbo copulativo, como se observa em (1a):

(1) «Ele fez a Joana feliz.»

(1a) «Ele fez a Joana ficar / ser / tornar-se feliz.»

Esta construção não está disponível com o adjetivo grávida, o que poderá eventualmente estar relacionado com razões aspetuais de complexidade maior que não teremos oportunidade de aprofundar neste espaço. No entanto, note-se, neste âmbito, que, por exemplo, «fazer feliz» descreve um estado faseável1. Daí serem possíveis as seguintes frases:

(1) «Ele começou a fazê-la feliz.»

(2) «Ele continuou a fazê-la feliz.»

(3) «Ele acabou de a fazer feliz.»

Já a combinação «*fazer grávida» não é faseável, como se vê pela impossibilidade das frases seguintes:

(4) «*Ele começou a fazê-la grávida.»

(5) «*Ele está a fazê-la grávida.»

(6) «*Ele acabou de a fazer grávida.»

Refira-se ainda que em contexto de ensino-aprendizagem será pertinente explicar que embora a construção «f...

Pergunta:

Na frase:

«Ao longo desse período, os operários enfrentavam condições insalubres e insustentáveis, enquanto tinham que trabalhar de maneira quase ininterrupta.»

A vírgula utilizada antes de enquanto está correta?

Resposta:

A vírgula está correta, embora seja opcional.

De acordo com o preceituado por Cunha e Cintra, usa-se vírgula «para separar as orações subordinadas adverbiais, principalmente quando antepostas à principal»1, ou seja, se a oração subordinada adverbial for colocada em início de frase, esta deslocação é assinalada por vírgula, como se observa em (1):

(1) «Quando vou ao cinema, gosto de ficar num lugar ao centro da sala.»

No entanto, como explica Marco Neves, «quando o elemento adverbial está no final da frase, é menos comum usar vírgula, embora seja uma possibilidade»2. Poderemos ainda acrescentar que se se verificar uma grande proximidade sintática e semântica entre o verbo e a oração adverbial, a vírgula não é aconselhada, como acontece em (2):

(2) «Como quando quiser.»

Na frase apresentada pelo consulente, o recurso à vírgula marca a simultaneidade temporal de duas situações. Se se pretender colocar essas situações no mesmo plano de importância, então a vírgula não deverá ser usada.

Uma nota ainda para a construção «ter que»: quando se pretende exprimir a obrigação ou dever, é preferível utilizar a construção «ter de + verbo no infinitivo» (para maior aprofundamento, consulte-se esta resposta).

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Tenho uma dúvida referente a um assunto que, por vezes, me tira o sono, a saber, a tal regência verbal.

Lendo um artigo, deparo-me com o seguinte trecho:

«Para ter um corpo magro e saudável não basta cortar calorias. Os métodos de emagrecimento mais eficazes são aqueles *em que* tanto a dieta quanto os exercícios fazem parte da rotina de quem pretende eliminar os quilos extras.»

A dúvida logo surgiu: por que a preposição em está antes do pronome relativo? Qual termo a está regendo?

Certo do auxílio, agradeço pelo tempo gasto.

Resposta:

Neste caso, a preposição introduz um sintagma com função de adjunto (modificador). 

As preposições que surgem antes dos pronomes relativos poderão ser regidas pelo verbo da oração subordinada relativa:

(1) «O amigo de que gosto já chegou.»

Na frase, é o verbo gostar que rege a preposição de, colocada à cabeça da oração relativa.

As preposições também podem ser regidas por um termo da oração subordinante, como acontece em (2):

(2) «Ficou feliz com quem participou.»

Neste caso, é o adjetivo feliz que rege a preposição com.

Identificamos também situações nas quais «em que» é usado como equivalente a «no qual» (preferencialmente com antecedentes não locativos) ou como equivalente a onde (preferencialmente, com antecedentes locativos)1, o que se verifica em (3) e (4):

(3) «Detesto as situações em que / nas quais tenho de ir à secretária.»

(4) «A casa onde / em que nos conhecemos já não existe.»

Nestas frases, a preposição introduz um sintagma com a função de adjunto / modificador no interior da sua oração.  

O mesmo se verifica na frase apresentada pelo consulente. Neste caso, a preposição em assinala a função de adjunto / modificador desempenhada pelo sintagma que introduz. Este sintagma identifica-se com maior clareza numa frase simples em que se substitua o pronome relativo pelo seu antecedente:

(5) «Tanto a dieta quanto os exercícios fazem parte, nestes métodos de emagrecimento, da rotina de quem pretende eliminar os quilos extras.»

Disponha sempre!

 

1. Para maior desenvolvimento, leia-se esta resposta.

Pergunta:

Existe o verbo "coerctar", de coerciva, coercitiva, coerção, etc.?

No caso de não existir, há alguma alternativa suficientemente eficaz no sentido da "força", "objetividade" e "agilidade" do termo?

Agradeço a atenção.

Resposta:

Em português, encontramos o verbo coarctar ( e não "coerctar") com o sentido de «limitar, restringir» (Dicionário Priberam), sem relação com coercivo, coercitivo e coerção. Contudo, regista-se coagir, que poderá ser o verbo que o consulente procura, uma vez que significa «obrigar alguém a fazer alguma coisa; forçar» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Associados ao sentido de coerção, encontramos ainda os verbos reprimir, coibir ou refrear.

Disponha sempre!

Pergunta:

Por favor, eu gostaria de sanar uma dúvida sobre teoria da comunicação.

Eu estava estudando esse assunto e me deparei com o seguinte conceito sobre comunicação:

«É um processo que envolve a troca ou compartilhamento de IDEIAS entre 2 ou mais interlocutores por meio de signos (verbais ou não verbais), regras semióticas convencionadas e mutuamente entendíveis."

Desculpe se parecerem óbvios os questionamentos abaixo:

Um "bate-boca" entre pessoas no qual há ocorrência de palavras vulgares é considerado comunicação? Uma "conversa fiada" idem?

O motivo dessa minha dúvida é que eu tenho para mim que o significado de ideias se refere a algo mais intelectualizado, mais pensado teorizado e afins, uma vez que palavras obscenas e conversa fiada nada teriam a ver com intelectualidades, teorizações, pois parte de uma situação mais espontânea, que não passou por uma reflexão dos interlocutores. Entendem minha dúvida?

Um YouTuber disse uma vez: «Pessoas intelectuais falam sobre IDEIAS e pessoas INCULTAS falam sobre pessoas.»

Fiquei pensando sobre isso...

Desde já, obrigado a vocês!

Resposta:

O conceito de comunicação é tratado em vários quadros teóricos que propõem diferentes modelos de análise, que aqui não poderemos explanar1

Não obstante, é relativamente consensual que o conceito de comunicação abarca qualquer troca de informações que ocorre entre um locutor e um interlocutor (ou vários). Este conceito não distingue a qualidade da mensagem veiculada, pelo que qualquer interação que ocorra e que envolva transmissão de informação é considerada comunicação.

Por esta razão, na definição que apresenta, o conceito do termo ideias deve ser entendido de forma muito lata, como qualquer conjunto de pensamentos (cf. Dicionário Priberam), independentemente do grau de intelectualidade que estes possam envolver.

Relativamente à afirmação do youtuber citada, apenas poderemos afirmar que tanto as «pessoas intelectuais» como as «pessoas incultas» estão envolvidas num processo de comunicação, uma vez que interagem entre si. Acresce que a comunicação poderá também ocorrer por processos não verbais.

Disponha sempre!

 

1. Não obstante, nesta resposta de Maria Regina Rocha poderá encontrar diversas sugestões bibliográficas relacionadas com o tema.