Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Queria compreender se a preposição a é corretamente usado na seguinte frase, e se utilizar de em vez de a não estará melhor:

«Assim que entraram no teatro sentiram o nariz contrair-se devido ao cheiro intenso [a] tintas, madeiras cortadas de fresco, vernizes.»

Muito obrigado.

Resposta:

De uma forma geral, e acordo com Celso Luft, ambas as regências são possíveis1. Para o demonstrar, são apresentados exemplos como:

(1) «Havia no quarto um cheiro a bafio» (Ramalho2)

(2) «Cheiro de couro» (poema de Drummond, NR, 7423).

Não obstante, o autor considera uma situação particular: não se pode usar a preposição a na expressão «cheiro de santidade». Para fundamentar esta situação, apresenta como exemplo:

(3) «justas e sofredoras, que morreram em cheiro de santidade” (Antero de Figueiredo: Fernandes4)

Pode verificar-se, no entanto, uma muito ligeira diferença de sentidos entre o uso de uma ou outra preposição. Assim, se compararmos as expressões (4) e (5), verificamos que a expressão (4) significa «o cheiro que as flores têm/emanam», enquanto a expressão (5) significa «o odor que alguém sentiu e interpretou como sendo de flores»

(4) «cheiro de flores»

(5) «cheiro a flores»

Assim, em certas condições e neste âmbito, a preposição de pode especializar-se no sentido de indicar a origem ou a fonte5.

Não obstante, refira-se também que com nomes deverbais (como é o caso de cheiro, que se forma a partir de cheirar), a nominalização do verbo associa-se frequentemente a uma construção em que o complemento nominal corresponde ao complemento direto do verbo, como acontece em (6)

(6) «a crítica ao livro» = «alguém criticou o livro»

Nestas situações, como afirmam Brito e Raposo, «existem nominalizações ativas com nomes deverbais correspondendo a verbos transitivos nas quais o complemento direto é introduzido não pela preposição canónica...

Pergunta:

À pergunta sobre se se escreve «um dia, encontrei o João», ou «num dia, encontrei o João, responderam em 1998 o seguinte:

«Atendendo à maneira como é formulada a pergunta, a expressão «um dia, encontrei o João» parece a melhor. No entanto, há casos em que a outra forma está mais correcta. Por exemplo: «Num dia de chuva, encontrei o João».' in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, [consultado em 01-10-2021]

Qual o motivo para «de chuva» alterar a construção? Qual a formulação correta?

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, embora possam ter significados distintos.

A preposição em utiliza-se para traduzir o valor de localização temporal com complementos que incluem informação temporal relacionada com dias da semana, estações ou períodos festivos1.

Neste contexto, a frase apresentada em (1) é equivalente a (2):

(1) «Num dia, encontrei o João.»

(2) «Encontrei o João neste intervalo de tempo.»

Já o determinante artigo indefinido um, quando associado a um nome, forma um sintagma indefinido, que é usado para «referir uma entidade particular do universo do discurso (ou um grupo particular de entidades), indicando, no entanto, ao ouvinte que a identificação dessa entidade ou grupo não é importante no contexto discursivo – em certos casos (mas não em todos), porque assume que o ouvinte, de qualquer modo, não tem informação suficiente para fazer essa identificação»2. Neste âmbito, podemos considerar que as frases (3) e (4) são equivalentes:

(3) «Um dia encontrei o João.»

(4) «A dada altura cuja referência explícita não interessa, encontrei o João.»

Todavia, refira-se que, no contexto de localização temporal, ocorrem situações de omissão da preposição em. Esta situação é mais frequente na oralidade, modalidade que tendencialmente busca a simplificação, mas também pode ocorrer na escrita, como se esclarece nesta resposta. Neste quadro, as frases apresentadas podem ser consideradas sinónimas. Não obstante, em âmbito formal, o uso da preposição é aconselhável.

Disponha sempre!

&...

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre o emprego da expressão: «todos os (...)»

Num texto, escrevi a seguinte frase:

«O serviço militar é um dever obrigatório destinado a homens maiores de 18 anos, que pode ser prestado em (...).»

Disseram-me para incluir a expressão «todos os» antes do elemento frásico «homens maiores de 18 anos».

Pois bem, a minha dúvida é precisamente se o emprego da expressão «todos os» é realmente necessário para a correta compreensão da frase...

Creio que ao dizer simplesmente «destinado a homens maiores de 18 anos (...)» já se compreende que diz respeito a «todos os homens», mas não tenho a certeza, e por isso, muito agradecia uma resposta.

Resposta:

Habitualmente, o uso de um sintagma nominal no plural deve associar-se ao determinante artigo definido se se pretender designar a totalidade de entidades que correspondem ao que é referido.

Assim, na frase (1), o locutor dá a entender que viu a globalidade dos filmes produzidos por Almodóvar:

(1) «Eu vi os filmes de Almodóvar.» (= todos os filmes)

Neste contexto, a utilização do quantificador todos revela-se redundante. Como referem Miguel e Raposo na Gramática do Português: «O uso explícito de todos é usualmente evitado por ser redundante e por tornar o enunciado pragmática e estilisticamente “pesado”, a menos que o falante queira enfatizar o aspeto quantitativo»1.

Desta forma, se pretender tornar claro que todos os homens maiores de 18 anos estão abrangidos pela afirmação será preferível a construção:

(2) «O serviço militar é um dever obrigatório destinado aos homens maiores de 18 anos, que pode ser prestado em (...).»

Se a intenção for realçar os aspetos quantitativo da afirmação, associado, por exemplo, à inferência de que ninguém está livre desta obrigação, então justificar-se-á o recurso ao quantificador todos.

Disponha sempre!

 

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 825.

Pergunta:

Na frase «quem o feio ama, bonito lhe parece», qual o sujeito do verbo parece? Qual a função sintática do pronome lhe? O termo «bonito lhe parece» exerce que função sintática em relação à primeira oração?

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada, o pronome lhe desempenha a função sintática de complemento indireto/objeto indireto.

Já a relação entre as duas orações que constituem a frase exige uma análise mais detalhada.

Assim, é comum a apresentação de frases idênticas à que se apresenta em (1):

(1) «Quem tudo quer tudo perde.»

Esta frase caracteriza-se por ter um sujeito oracional que corresponde à oração subordinada substantiva relativa «Quem tudo quer». A oração «tudo perde» é a oração subordinante composta por verbo e complemento direto / objeto direto («tudo»).

No caso da frase apresentada pelo consulente (a qual corresponde a um provérbio de uso comum), embora esta apresente semelhanças com a frase (1), a oração subordinada substantiva relativa não é o sujeito do verbo parece. Na verdade, o sujeito deste verbo está elidido, mas semanticamente é possível identificar que se trata do termo feio:

(2) «O feio parece-lhe bonito.»

Assim sendo, a oração relativa poderá ser interpretada de duas formas, que apresentamos aqui como hipóteses de estudo:

(i) como integrando uma estrutura elíptica, da qual o predicado do qual esta oração é sujeito está omisso (poderí...

<i>Fazer</i>
Entre a fraseologia e a significação

«O verbo fazer é um verbo multiúsos. Embora pequeno e discreto, consegue ter uma capacidade de significação muito alargada e diversificada.» Este é o mote que abre a crónica da professora Carla Marques, dedicada ao verbo fazer e incluída no programa Páginas de Português, transmitido pela Antena 2, no dia 3 de outubro de 2021.