Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Podiam esclarecer se a resposta dada em "O relativo quem e a preposição a" está em contraste com o que já se tinha dito na resposta "O emprego dos relativos que e quem" (26/09/2018, ponto iii), no qual se diz que «quem não pode ter a função de sujeito, nem complemento direito»?

Segundo o primeiro documento, quem pode ter qualquer destas funções, como podemos ver nos exemplos 4 e 5 ali.

Como é que é possível que a frase «Sei quem a Rita encontrou no cinema» esteja correta, enquanto a frase «Chegou o rapaz quem conheci» é gramatical?

Será forma correta se removermos «o rapaz» e dissermos «Chegou quem conheci»?

Resposta:

As respostas dadas às duas perguntas não entram em contradição. Para compreender o que é afirmado em cada uma delas, é importante distinguir dois contextos de ocorrência do pronome relativo quem. Este pode, por um lado, surgir em oração subordinadas relativas substantivas. Estas orações caracterizam-se pelo facto de o pronome relativo não ter antecedente expresso. É o que acontece em (1):

(1) «Quem tudo quer tudo perde.»

Por outro lado, o relativo quem pode também surgir em orações subordinadas relativas adjetivas, que se distinguem das anteriores pelo facto de o pronome relativo ter um antecedente. É o que se verifica em (2), onde se sublinha o antecedente:

(2) «Falei com o funcionário a quem pediste um favor.»

São estes dois contextos distintos que criam condições para o relativo quem exercer funções sintáticas distintas.

Assim, quando surge em orações subordinadas relativas substantivas, não tendo, portanto, qualquer antecedente expresso, o relativo quem pode desempenhar diferentes funções dentro da sua oração:

(3) «Quem me conhece sabe do que falo.» (quem = sujeito)

(4) «Reconheci quem encontraste na festa.» (quem = complemento direto)

(5) «Disseram-me a quem telefonaste.» (a quem = complemento indireto)

(6) «Descobri de quem fala o livro.» (de quem = complemento oblíquo)

(7) «Sei quem tu és.» (quem = predicativo do sujeito)                  

Pergunta:

A expressão temporal «até então» pode, modernamente, ter como equivalente também «até agora»?

À luz da tradição gramatical, então, nesse tipo de contexto, se refere a tempo passado, mas, no Brasil, é muito comum esse outro tipo de registro.

Em Portugal, comportamento semelhante talvez indique mudança em curso, não?

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, o uso canónico da locução «até então» aponta para um valor de localização temporal num intervalo de tempo passado ou futuro. Embora se trate de uma localização temporal difusa, os usos tradicionais da locução não parecem apontar para a localização num intervalo de tempo presente. Não obstante, como refere o consulente, no Brasil é possível identificar usos em que a locução terá um valor equivalente a «até agora», como acontece em (1):

(1) «Faltam cinco minutos para a cerimônia de inauguração, e está subindo ao palanque o prefeito, para inaugurar esta melhoria urbana num local em que até então eram comuns imensos engarrafamentos.» (in Veja)

Este facto pode, com efeito, constituir um sinal de mudança em curso. Não obstante, precisaríamos de realizar um estudo de corpus mais alargado para poder confirmar esta afirmação, o que não nos é possível neste espaço.

No que respeita a Portugal, não conseguimos identificar usos em que o valor ativado pela locução seja equivalente ao de «até hoje», pelo que este ser um fenómeno da variante brasileira do português.

Disponha sempre!

Pergunta:

Examine-se este excerto evangélico:

«Então o pai reconheceu ser precisamente aquela a hora em que Jesus lhe dissera 'o teu filho vive'; e creu, ele e todos os de sua casa.»

Qual a razão do uso da vírgula após a palavra creu?

Acrescento que, embora o sujeito não esteja em posição canônica, sendo ele imediatamente posposto ao verbo, não demandaria vírgula, a exemplo de «Partiu o motorista e os passageiros em meio a uma terrível tempestade», «Receberam o candidato e seu professor os aplausos mais calorosos».

Obrigado.

Resposta:

A vírgula em questão está correta e justifica-se do ponto de vista sintático.

A construção apresentada inclui algumas particularidades sintáticas que importa analisar.

A meu ver, o sintagma «ele e todos os da sua casa» não integra o sujeito da oração, o que também é sinalizado pelo fenómeno de concordância, uma vez que o verbo crer se encontra no singular. Na verdade, o sujeito desta oração é nulo subentendido, sendo recuperável pelo contexto como uma terceira pessoa do singular, que tem como referente «o pai».

Por seu turno, o sintagma «ele e todos os da sua casa» é uma estrutura parentética1, que se caracteriza por introduzir uma informação adicional e por formar uma unidade autónoma do ponto de vista prosódico. É este facto que justifica a colocação da vírgula antes deste segmento frásico.

Algo semelhante acontece na frase (1):

(1) «O João, e alguns colegas do trabalho, vai viajar.»

No caso da frase em apreço, o aparecimento do pronome ele na construção parentética poderá ficar a dever-se a uma construção de reforço / retoma, que pragmaticamente veicula a ideia do coletivo: a crença se estendeu a ele e a todos os membros da sua casa.

Disponha sempre!

 

1. Para se aprofundar a questão da coordenação parentética, leia-se Matos e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1782-14783.

Pergunta:

Eu tinha de fazer essa pergunta a vocês antes, porém não me foi possível, então faço a vocês agora.

A consultora Carla Marques respondeu a um consulente a respeito do verbo alcançar, presente na obra de Machado de Assis O Alienista. Confesso que, depois da explicação dela, fiquei confuso, pois não consegui compreender a construção em outras situações: «[…] não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, [… ]» (Machado de Assis, O Alienista)

Leve em consideração a seguinte exposição:

1.º Se se trata do verbo alcançar como transitivo direto e indireto (conforme foi apontado por Carla Marques), por que o pronome dele parece exercer a função de sujeito de «ficasse em Coimbra», quando na verdade tal exerce função de objeto indireto? Assim sendo, é como se a frase pudesse ser estruturada do seguinte modo: «… não podendo el-rei alcançar de que ele ficasse em Coimbra…».

2.º Se eu estiver errado a respeito da observação do pronome como sujeito, então seriam permitidas as construções do tipo: «… não podendo el-rei alcançar de mim/ti que ficasse/ficasses em Coimbra…»

3.º Mas, se eu estiver certo na minha observação do referido pronome como sujeito, então permitidas seriam tais construções: «… não podendo el-rei alcançar de eu/tu que ficasse/ficasses em Coimbra…» Ou: «… não podendo el-rei alcançar de que eu/tu ficasse/ficasses em Coimbra…»? Se sim, por quê?

4.º A frase de Machado de Assis poderia escrever-se no modo reduzido assim: «… não podendo el-rei alcançar de ele que ter ficado em Coimbra…»?

5.º Seria correto substituir o verbo alcançar pelos verbos conseguirResposta:

Na frase de Machado de Assis, o pronome contraído com preposição dele (de + ele) não desempenha a função de sujeito porque não está dependente da forma verbal ficasse, mas antes da forma verbal alcançar. Assim, na frase, dele desempenha a função de complemento oblíquo / complemento do verbo (complemento relativo), pois o verbo alcançar, sendo transitivo direto e indireto, pede dois complementos: um complemento direto / objeto direto («que ficasse em Coimbra, […]») e um complemento oblíquo / complemento de verbo introduzido pela preposição de («dele»).

Por seu turno, o verbo ficar, verbo da oração subordinada completiva, tem um sujeito subentendido, que se recupera pelo contexto e que corresponde a uma 3.ª pessoa do singular que tem como referente o nome médico (que surge anteriormente no texto).

As frases que o consulente apresenta no terceiro ponto da sua pergunta não são, assim, possíveis porque a preposição de está relacionada com o pronome e não com a oração subordinada completiva.

A frase apresentada pelo consulente no quarto ponto também não é possível porque a oração subordinada completiva, sendo introduzida pela conjunção que, terá de ter um verbo flexionado.

Finalmente, na frase de Machado de Assis, o verbo alcançar é efetivamente sinónimo dos verbos conseguir o obter.

Disponha sempre!

Pergunta:

Eu venho estudando a gramática italiana, e me deparei com o vocábulo italiano ovvero, «congiunzione disgiuntiva».

A respeito desse vocábulo italiano, o dicionário bilíngue Martins Fontes: Italiano–Português (São Paulo: 2012) apresenta como possíveis traduções: ou, «ou então».

Minha dúvida é esta: se pode usar a locução «ou então» no lugar da conjunção disjuntiva ou em qualquer oração?

Exemplos:

1. «Suas palavras podem ser sinceras ou (ou então) falsas.» (Dicionário: italiano–português, p.685)

2. «Ou (ou então) preste atenção, ou (ou então) saia.»

Caso contrário, como usar de modo certo «ou então»?

Em que situação usá-lo? Se não for pedir demais. Por favor, gostaria que explicasse de modo mais acurado.

Desde já, o meu muitíssimo obrigado.

Resposta:

A locução «ou então» pode ser usada com um valor disjuntivo similar ao da conjunção ou. Por essa razão, poderá surgir em muitos contextos onde aparece ou:

(1) «Vamos ao cinema ou/ou então vamos à praia.»

Esta é a situação verificada também na frase 1. apresentada pelo consulente na pergunta que nos endereça, na qual a locução «ou então» expressa um valor de opção ou de alternativa entre os termos coordenados.

No entanto, a conjunção correlativa «ou… ou» não é equivalente a «ou então… ou então», como se verifica em (2):

(2) «Ou vamos ao cinema ou vamos à praia.»

(2a) «*Ou então vamos ao cinema ou então vamos à praia.»

Conclui-se assim que «ou então» não poderá ser associado ao primeiro membro coordenado, pois a frase fica agramatical. Esta situação verifica-se porque a locução «ou então» terá tendência para ativar uma interpretação inferencial que assenta numa leitura exclusiva da disjunção, ou seja, «ou então» será preferencialmente usado em frases que convoquem a leitura de que apenas um dos membros da coordenação é verdadeiro.

Por esta razão, a frase (3) será possível:

(3) «Ou presta atenção ou então saia.»

A locução «ou então» ativa a interpretação de que não se verificando a oração «presta atenção», a alternativa será «saia». Com a estrutura «ou então» parece ser difícil ativar uma leitura inclusiva em que ambos os membros coordenados podem ocorrer em simultâneo:

(4) «Ou assina o pai ou assina o filho, ou ambos.»

(4a) «?Ou assina o pai ou então...