Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Surto
Os polos da significação de uma palavra

O termo surto tem feito parte do léxico quotidiano da pandemia. Na sua crónica, a professora Carla Marques propõe uma reflexão em torno da sua significação. 

 

 

Crónica emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 4 de julho de 2021

Pergunta:

«Andava como fosse passista na avenida em dia de Carnaval.»

«Vivia na cidade como fosse de lá.»

Conheço a expressão «como se fosse», mas e sem o se, está correta?

Obrigado.

Resposta:

A gramática tradicional inclui, entre as conjunções e locuções conjuncionais comparativas, a palavra como e as locuções «como se» e «como que». A locução «como se» é considerada por diversos gramáticos como introduzindo uma comparativa hipotética1. Embora do ponto de vista normativo, esta pareça ser a construção mais normativa, não faltam exemplos na comunicação social de usos em que se omite a conjunção se, como se observa por uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies:

(1) «Ao contrário, há progressiva afirmação da sua verdadeira identidade como fosse a celebração do poder feminino.» (Jornal GGN)

(2) «Fiz o aquecimento e fizemos um treino mais técnico […], tendo passado pelas mesmas situações como fosse um árbitro.» (Estar afastado do centro de decisão penaliza a arbitragem açoriana - Açoriano Oriental)

(3) «Agora temos esta “geringonça” que trata o povo como fosse um bando de parvos e de néscios.» (Ponto por ponto in Diário do Minho – Jornal de Inspiração Cristã)

(4) «[…] e Antonina, por ser posto de atendimento, funciona como fosse um minifórum […]» (Folha do Litoral News)

Assim, poderemos dizer que a construção com a locução «como se» ...

Pergunta:

Dentro dos constituintes genitivos, existem os complementos genitivos e os modificadores genitivos: como distingui-los e quais são as consequências desta diferenciação?

Obrigada.

Resposta:

Algumas correntes gramaticais consideram a existência de constituintes genitivos, que correspondem, grosso modo, aos sintagmas preposicionais introduzidos pela preposição de que se associam ao nome.

Na sua relação com o nome, estes sintagmas podem desempenhar duas funções sintáticas: complemento do nome ou modificador do nome. A natureza da função sintática desempenhada pelo sintagma está dependente da natureza argumental do verbo. Ou seja, está dependente de o verbo selecionar um complemento ou não.

Assim, na frase (1), o sintagma preposicional tem a função de complemento do nome (será, então, um complemento genitivo):

(1) «A construção da ponte demorou muitos anos.»

O sintagma preposicional funciona como complemento do nome porque estamos perante um nome deverbal, ou seja, que se formou a partir de um verbo (neste caso, o verbo construir).

Na frase (2), o sintagma preposicional desempenha a função de modificador do nome porque este não seleciona um argumento com valor locativo:

(2) «A pintura do Museu Nacional foi oferecida.»

Note-se, todavia, que o nome pintura pode selecionar um argumento com valor de agente, como acontece em (3), onde o sintagma preposicional tem a função de complemento do nome:

(3) «A pintura de Leonardo da Vinci é muito famosa.»

Pergunta:

No texto

«E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: "Bebei dele todos; Porque isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados. E digo-vos que, desde agora, não beberei deste fruto da vide, até aquele dia em que o beba novo convosco no reino de meu Pai." Mateus 26:27-29»

...a expressão «bebei dele...» refere-se ao vinho ou ao cálice?

Resposta:

A questão colocada envolve a identificação da referência do pronome pessoal ele. Como é sabido, os pronomes pessoais não têm uma referência autónoma pelo que esta fica dependente da situação de enunciação ou do contexto discursivo.

O caso apresentado é ambíguo porque o pronome [d]ele tanto pode preencher a sua referência na situação de enunciação como no contexto discursivo. Se optarmos por esta última análise, consideraremos que o pronome assume como antecedente o substantivo cálice, o que implica a interpretação que se apresenta em (1):

(1) «E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lhes o cálice, dizendo: Bebei todos do cálice […]»

Não obstante, esta parece não ser a interpretação mais acertada atendendo aos segmentos textuais que se seguem. Em primeiro lugar, logo de seguida, afirma-se «Porque isto é o meu sangue». Se cálice fosse a referência do pronome [d]ele, então também o seria do pronome isto. Todavia, considera-se que a afirmação «Porque este cálice é o meu sangue» não parece traduzir a intenção do enunciado. Esta última frase copulativa tem um valor de identificação e parece ficar claro que o sangue se identifica com vinho e não com cálice.  O segmento «não beberei deste fruto da vide» parece vir confirmar esta interpretação, uma vez que o determinante este retoma um antecedente relacionado com «fruto de vide» ou, então, aponta para uma referência deítica existente na situação de enunciação e que corresponde ao vinho.

Perante o que ficou exposto, considero que o prono...

Pergunta:

Nos exemplos «Tive que fazer aquilo [para que todo o resto valesse a pena]» e «Tive que fazer aquilo pois era necessário [para que o bem de todos prevalecesse]», é correto afirmar que as orações destacadas por parênteses nos períodos têm função sintática de oração subordinada adverbial final, a primeira, e oração subordinada substantiva completiva nominal (de «necessário»), a segunda?

Gostaria, se possível, de uma dica que facilitasse a identificação desses tipos de orações.

Obrigado.

Resposta:

A questão que coloca pretende não a identificação da função sintática de um constituinte, mas a classificação de uma oração.

Assim, na primeira frase,

(1) «Tive que fazer aquilo para que tudo1 o resto valesse a pena.»

 o constituinte «para que tudo o resto valesse a pena» é uma oração subordinada adverbial final, que apresenta a finalidade da situação descrita na oração subordinante. A oração final caracteriza-se, deste modo, por se relacionar com a oração subordinante na sua totalidade.

Na segunda frase

(2) «Tive que fazer aquilo, pois era necessário para que o bem de todos prevalecesse.»

o constituinte «para que o bem de todos prevalecesse» está dependente do adjetivo necessário, pelo que se trata de uma oração subordinada substantiva completiva. Esta oração dependente de um adjetivo e completa o seu sentido.

Disponha sempre!

 

1. Para distinguir tudo de todo, veja-se esta resposta.