Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Deparei-me com um ensaio* ["Contextos de uso do indefinido plural uns/umas em contraste com alguns/algumas"] no website da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e um dos pontos foi que há casos em que alguns podem ser utilizados antes da numeração e expressões como tempos/quantos, em vez de uns.

Os exemplos foram:

«O Massimo esteve dentro do hotel alguns três minutos.»

«Agora, só numa semana são alguns quatro ou cinco.»

Assim como «Mas, de alguns tempos para cá, tenho descoberto alguns pontos em que, quase por milagre, ela sobreviveu».

«Mas, apesar de tudo, apesar de o nosso maoísmo não ter passado de um amo que de má consciência de alguns quantos filhos-família e militares especialistas em guerra psicológica contra os pretos, mantém-se, claro, a questão moral.»

Gostaria, então, saber se isto é gramaticalmente correto.

Se alguém escrever «Estou aqui algumas cinco vezes por dia» e «O cunhado da vítima afirma que "viviam a alguns 100 metros um do outro, mas até se falavam e nunca discutiram os dois"», então, é incorrecto [construir estas frases de acordo com o artigo em causa], mas as frases «Agora, só numa semana são alguns quatro ou cinco» e «O Massimo esteve dentro do hotel alguns três minutos» estão corretas.

Porque é que alguns funciona nos últimos exemplos mas não nos primeiros? Qual é a diferença?

Fico muito grato pelas suas respostas.

Resposta:

Antes de mais, é importante referir que o estudo em questão1 aborda os contextos de uso do indefinido plural uns em contraste com o uso do quantificador alguns não numa perspetiva normativa, mas numa perspetiva descritiva. Assim, não devemos esperar encontrar neste artigo uma orientação que vise assinalar usos corretos ou incorretos. A linguística descrita descreve os usos e considera as reações dos falantes, de maior ou menor aceitabilidade ou de rejeição desses mesmos usos.

O estudo citado trata, num momento particular, a situação apresentada pelo consulente, a qual está relacionada com o uso das palavras em estudo com numerais.

É neste contexto que se afirma que, nas frases apresentadas, o uso de uns é aceitável ao passo que o de alguns parece ser pouco aceitável2:

(1) «Inez Teixeira é uma jovem pintora que tem exposto regularmente desde há uns dois anos.»

(1a) «?Inez Teixeira é uma jovem  pintora  que  tem  exposto  regularmente  desde há alguns dois anos.

 (2) «Prove-se agora, deixe-se que o tempo em garrafa faça o seu trabalho, que o corpo de taninos deste vinho é poderoso, e beba-se daqui a uns cinco anos.»

(2a)  «?Prove-se agora, deixe-se que o tempo em garrafa faça o seu trabalho, que ...

Pergunta:

Relativamente à atração exercida pela conjunção subordinativa, e devido ao facto de estarmos perante frases longas, agradecia que me esclarecessem se a próclise continua a fazer sentido nas mesmas:

«A afirmação é verdadeira PORQUE, na infância, sonhamos muito e iludimo-NOS muito.»

«A afirmação é verdadeira PORQUE, quando ele vê um castelo ou vai à praia, recorda-SE da infância e LEMBRA-SE que esse sonho foi destruído.»

Em relação à segunda frase, perguntava se é obrigatória a preposição de regida pelo verbo lembrar-se («lembra-se de que»).

Cordialmente

Resposta:

De uma forma geral, os pronomes clíticos (ou átonos) que surgem no interior de uma oração subordinada são colocados em posição proclítica.

As frases apresentadas pelo consulente envolvem, no entanto, uma questão adicional: a colocação do clítico em orações subordinadas finitas coordenadas entre si. Nestes casos, quando a conjunção subordinativa não está presente nas orações coordenadas, aceita-se a ênclise ou a próclise nos termos coordenados. Assim, as frases apresentadas a seguir são ambas aceitáveis:

(1) «A afirmação é verdadeira porque, na infância, sonhamos muito e nos iludimos muito.»

(2) «A afirmação é verdadeira porque, na infância, sonhamos muito e iludimo-nos muito.»

Finalmente, na segunda frase apresentada pelo consulente, a tendência será a de considerar aceitável o uso com próclise em ambas as orações (3), sendo, todavia, possível a ênclise na segunda oração coordenada (4):

(3) «A afirmação é verdadeira porque, quando ele vê um castelo ou vai à praia, se recorda da infância e se lembra que esse sonho foi destruído.»

(4) «A afirmação é verdadeira porque, quando ele vê um castelo ou vai à praia, se recorda da infância e lembra-se que esse sonho foi destruído.»

Relativamente ao uso da preposição de com o verbo lembrar-se, esclarecem Cunha e Cintra que, com uma oração completiva, a preposição pode ser omitida. Os autores apresentam como exemplo:

(5) «Lembro-me que certa vez juntei uma porção de artigos médicos sobre o assunto.» (Rubem Braga,

Pergunta:

Na frase «Temos maçã e pero, enquanto em inglês há só apple», qual é o valor da conjunção enquanto?

Muito obrigada!

Resposta:

No caso apresentando, a conjunção enquanto apresenta um valor contrastivo.

Comummente, a conjunção enquanto traduz um valor temporal, introduzindo uma oração que tem frequentemente um valor durativo:

(1) «O João lia um livro enquanto a Rita via televisão.»

Não obstante, enquanto pode exprimir um contraste entre duas orações quando estas incluem verbos que, do ponto de vista aspetual, traduzem estados1, como em (2):

(2) «O João é muito simpático enquanto a Rita é antipática.»

O mesmo se verifica na frase apresentada pela consulente.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2006.

 

Pergunta:

Gostaria de ficar esclarecida quanto ao seguinte:

1.º – As palavras de sentido coletivo dúzia, dezena e década pertencem à classe dos quantificadores numerais ou dos nomes?

2.º – A palavra duplo pode ser nome, adjetivo e quantificador. Podem dar-me exemplos do seu emprego enquanto adjetivo e quantificador?

Obrigada.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Terminológico, que compila os termos a utilizar em contexto escolar não universitário, a classe do quantificador «expressa uma quantidade numérica inteira precisa (numeral cardinal) (i), um múltiplo de uma quantidade (numeral multiplicativo) (ii), ou uma fracção precisa de uma quantidade (numeral fraccionário)». No Dicionário Terminológico não se apresentam exemplos de casos particulares que correspondam às palavras apresentadas. Não obstante, na Gramática do Português, é apresentada uma secção dedicada aos «numerais cardinais especiais», onde se refere que certos numerais «indicam, mesmo no singular, grupos de identidades cujo número especificam com exatidão»1. As palavras dúzia, dezena e década integram este caso especial quando acompanham um nome, denotando um número2, pelo que, no quadro do ensino não universitário, poderão ser consideradas quantificadores numerais.

Por outro lado, a palavra duplo pode, efetivamente, integrar diferentes classes de palavras, de acordo com o seu comportamento. Assim, poderá funcionar como

(i) quantificador multiplicativo: «Passou a contratar o duplo dos trabalhadores que contratava antes.»3

(ii) adjetivo: «Bebe café em doses duplas.»

(iii) nome comum: «O duplo substituiu o ator principal.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 934.

2. Estes casos especiais que não e...

Pergunta:

Na frase «Os lutadores agrediram uns aos outros», qual a função sintática do termo «uns aos outros»?

Obrigado.

Resposta:

No sentido de «trocar agressão» ou de «agredir reciprocamente», o verbo agredir deve ser usado pronominalmente (agredir-se).

A frase apresentada deve, assim, ter a seguinte forma:

(1) «Os lutadores agrediram-se uns aos outros.»

Neste caso, o pronome se desempenha a função de complemento direto, desempenhando a expressão «uns aos outros» a mesma função sintática.

Nesta frase, a expressão «uns aos outros» constitui um caso de redobro do clítico, que corresponde a uma expansão de uma função sintática por meio de um pronome clítico1, semelhante ao que se verifica em (2) e (3):

(2) «Chamámo-las a elas para o palco.»

(3) «Eles cumprimentaram-se um ao outro

Disponha sempre!

 

1. Cf. Mateus, Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 832-833.