Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
47K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sobre a frase «Espero poder tornar-me alguém de que gosto um dia», disseram-me que está incorreta, mas não percebo a razão.

Perguntei a alguns portugueses se lhes soava poética ou estranha. Uns disseram que "de quem gosto" soava melhor e outros "de quem goste".

Analisemo-la um pouco melhor. Dividirei a frase em duas partes: "Espero poder tornar-me alguém" e "Alguém de que gosto".

Como vedes, omitirei "um dia", pois não penso que mudará a frase completamente.

Podemos dizer que a segunda parte tem um "adjectivo" ("de que gosto") e pode ser substituído por um outro adjectivo (por exemplo, "agradável").

Quanto à primeira, "Espero" influencia "poder tornar-me", mas não parece influenciar directamente "alguém". Quem desempenha essa função é "tornar-me". Podemos dizer "Espero poder tornar-me alguém agradável" ou "Torno-me alguém de que gosto", penso eu.

O que quero dizer é que, em "Espero poder tornar-me alguém de quem goste", "Espero" parece harmonizar toda a frase. Mas em "Espero poder tornar-me alguém de que (ou de quem) gosto", "tornar-me alguém" passa a influenciar "de que gosto". Portanto não penso que a frase «Espero poder tornar-me alguém de que gosto um dia.» esteja incorrecta, se o que digo faz sentido.

Estou um pouco confuso e gostava duma explicação mais aprofundada.

Agradeço-vos o serviço!

Resposta:

A frase que apresenta coloca o problema do relativo a usar: que ou quem?

O pronome relativo que pode relacionar-se com qualquer tipo de antecedente, tenha este traços [+humano], [-humano] ou [lugar], por exemplo, conforme se atesta pelas frases seguintes, nas quais se destaca o antecedente:

(1) «O rapaz que figura neste filme é meu conhecido.»

(2) «O livro que comprei na feira é ótimo.»

(3) «A casa em que fiquei era confortável.»

Já o pronome relativo quem não aceita tanta diversidade de contextos de uso, uma vez que surge com antecedente com o traço [+humano], não sendo aceitável a sua construção com antecedentes com o traço [-humano]:

(4) «A rapaz a quem telefonei já me respondeu.»

(5) «*O livro a quem comprei é ótimo.»

A frase apresentada pela consulente convoca ainda o caso das orações relativas nas quais o pronome relativo surge preposicionado. Ora, nestes contextos, é possível usar o relativo que:

(6) «O rapaz a que emprestei um livro nunca me disse nada.»

No entanto, alguns falantes preferem usar, nestes contextos preposicionados relativos como quem, «o qual», cujo ou onde.

Assim, na frase apresentada pela consulente, haverá falantes que preferem usar o relativo quem:

(7) «Espero poder tornar-me alguém de quem gosto um dia.»

No entanto, ela está correta se a opção recair no pronome relativo que:

(8...

Pergunta:

A questão é sobre regências (se este é o nome correto a dar quando não se trata de um verbo) da expressão «estar entusiasmado».

Penso que está correto «estar entusiasmado com um livro». Presumo que também será correto escrever «estar entusiasmado por o trabalho ser interessante» no sentido de justificar o entusiasmo.

Mas posso utilizar "estar entusiasmado para" quando é uma atividade no futuro? Por exemplo: «Estou entusiasmado para ir à praia.»

Obrigada.

Resposta:

A pergunta colocada tem a ver com a regência do adjetivo entusiasmado, ou seja, as preposições que o adjetivo pede em diferentes construções.

De acordo com o Dicionário Prático de Regência Nominal, de Celso Luft, entusiasmado pode reger as preposições com e por, em frases como as que se apresentam em (1) e (2):

(1) «Deixou os alunos entusiasmados por este tipo de escrita.»

(2) «Ficou entusiasmado com a atenção dos alunos.»

Também o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, ou o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa só apresentam exemplos de entusiasmado regendo as preposições com e por.

Não obstante, uma pesquisa no Corpus de Referência do Português Contemporâneo apresenta como resultados alguns usos de entusiasmado com a preposição para:

(3) «" Estou verdadeiramente entusiasmado para ver o que fizeram do Dr. Doom ", diz Queseda.» (Jornal Público)

(4) «Mostra-se bastante entusiasmado para ver o resultado de um cartaz incomum» (Jornal Público)

Estes resultad...

Pergunta:

Na frase «depois chegou o amor: veio com a liberdade», o segmento «com a liberdade» é um complemento oblíquo?

Resposta:

Na frase apresentada, o constituinte «com a liberdade» desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

O verbo vir pode associar-se a diferentes tipos de construções:

(i) como verbo principal intransitivo: «O João não vem hoje.»

(ii) como verbo principal transitivo indireto: «Em vem ao almoço.»

(iii) como verbo copulativo: «Eles vêm felizes.»

Na frase apresentada, o verbo vir surge como transitivo indireto, pelo que o constituinte «com a liberdade» que o acompanha tem a função de complemento oblíquo. Neste caso, o verbo rege a preposição com, tendo o sentido de «acontecer simultaneamente com; coincidir» (Dicionário Houaiss daa Língua Portuguesa).

Disponha sempre!

 

Ter «dois pesos e duas medidas»
Da mercearia à moralidade

A crónica da professora Carla Marques – emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 6 de junho de 2021 – centra-se na expressão idiomática «Ter dois pesos e duas medidas». Ponto de partida: o  que aconteceu na final da Liga dos Campeões de futebol, realizada na cidade do Porto, no dia 29/05/2021.

 

 

Pergunta:

Agradeço desde já a vossa sempre prestável e útil ajuda. No poema de Eugénio de Andrade "Os trabalhos da mão", que recurso(s) expressivo(s) podemos encontrar no verso «Prefere agora as sílabas da sua aflição»?

Obrigada.

Resposta:

Se considerarmos que a expressão «as sílabas/da sua aflição» está apresentada pelos temas que agora dominam a produção poética do sujeito lírico, poderemos considerar que estamos perante uma metonímia. Este recurso expressivo «[e]m sentido lato, é a figura de linguagem por meio da qual se coloca uma palavra em lugar de outra cujo significado dá a entender. Ou a figura de estilo que consiste na substituição de um nome por outro em virtude de uma relação semântica extrínseca existente entre ambos. Ou, ainda, uma translação de sentido pela proximidade de ideias» (Ceia, E-dicionário de Termos Literários)

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras.

Disponha sempre!