Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Examinem-se as seguintes frases:

«Quando foi que te vi tão bonita?»;

«Quando é que te vi tão bonita?».

Não falta na segunda frase a harmonia dos tempos verbais? Pois dizemos «Foi ontem que te vi tão bonita», mas não «É ontem que te vi tão bonita».

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases apresentadas constituem interrogativas que incluem uma construção de clivagem (ou de realce/ foco) «é que», o que se comprova pelo facto de ser possível excluí-la da frase:

(1) «Quando te vi tão bonita?»

Como afirmam Barbosa, Santos e Veloso relativamente à sequência «é que», a flexão de tempo, pessoa e número é, tipicamente, fixa – 3.ª pessoa do singular e presente do indicativo-, mas outros tempos também são possíveis, embora menos comuns» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2546).

Assim sendo, ambas as frases apresentadas são aceitáveis, sendo que a primeira inscreve a questão num tempo passado, enquanto a segunda adquire um valor habitual aplicável ao passado e ao presente.

Disponha sempre!

Pergunta:

Em meio da análise das funções sintáticas na expressão «(...) todos [os instrumentos] eram de um manejo laborioso e lento», excerto do conto "Civilização" de Eça de Queirós, deparei-me com dúvidas, particularmente quanto aos dois adjetivos.

A predicação do sujeito «todos» pelo constituinte «de um manejo laborioso e lento» parece-me óbvia, numa das muitas aceções do verbo «ser», como «ter uma certa qualidade» ou «mostrar-se». Mas, ao interrogar a função sintática específica dos adjetivos como elementos ligados ao nome «manejo», permanece a questão: trata-se de um complemento do nome (apesar de serem adjetivos qualificativos e não relacionais), por fazer falta à especificação do seu sentido?

Vejamos o que sucederia na ausência dos referidos adjetivos: «Todos [os instrumentos] eram de um manejo». Este enunciado não seria de modo algum congruente. Ou devemos considerar em todo o caso que se trata de um modificador do nome restritivo, por serem adjetivos qualificativos? Aqui, no Ciberdúvidas, numa questão similar, atribui-se ao adjetivo neste tipo de expressão, isto é, interno ao predicativo do sujeito, a função de modificador do nome restritivo.

O certo é que existem muitas expressões análogas, como por exemplo, «Este é um homem de um prestígio enorme» ou «enorme prestígio». Nesta, pode-se retirar, sem perda de sentido, o adjetivo qualificativo: «Este é um homem de prestígio». A palavra «prestígio» tem, neste caso, valor semântico suficiente para assegurar a gramaticalidade do enunciado. No caso em apreço, com a palavra «manejo», porém, parece-me não estar assegurada a mesma condição.

Outro exemplo em que o adjetivo é essencial: «Esta lata é de abertura fácil». Ou, ainda: «Este assunto é de grande importância». Pergunta-se «De que tipo de abertura é esta lata?/Qual o tipo de abertura d...

Resposta:

Os adjetivos em questão desempenham a função de modificador do nome restritivo.

A questão apresentada colocada levanta o problema dos níveis de análise de uma frase e da ação semântica exercida por cada palavra no interior dessa mesma frase.

Note-se que, neste caso, o facto de o sintagma nominal («manejo laborioso e lento» ser composto por nome acompanhado de adjetivos significa que a predicação que este vai exercer sobre o nome com função de sujeito («todos os instrumentos»)  se obtém por meio da conjugação da significação do nome nuclear do sintagma (manejo) com as propriedades que especificam esse mesmo nome e que restringem a classe por ele denotada, ação exercida pelos adjetivos laborioso e lento.

Neste âmbito, comparem-se as frases (1) e (2):

(1) «O João é professor.»

(2) «O João é um professor simpático.»

Em (1) a predicação feita sobre o sujeito (João) incide sobre a sua classe socioprofissional, enquanto em (2) a predicação coloca a tónica num parâmetro psicológico (simpático) que é associado ao nome modificado (professor).

Isto significa que o facto de a predicação presente numa frase ter uma significação diferente devido à presença de um adjetivo não implica que o adjetivo seja argumento do nome sobre o qual incide. Ou seja, isto não significa que o adjetivo tenha necessariamente de desempenhar a função de complemento do nome.

Com efeito, na frase apresentada pela consulente, embora a presença dos adjetivos seja fundamental para a predição feita sobre os

Pergunta:

«Passou a tarde na sala de jogos.»

Qual a função sintática de "na sala de jogos"? Complemento oblíquo ou modificador do grupo verbal?

Resposta:

O constituinte «na sala de jogos» tem, na frase apresentada, a função sintática de complemento oblíquo

O verbo passar usado com o sentido de «consumir» ou «empregar (tempo)» pode reger a preposição em seguida de um constituinte com valor locativo, assumindo como verbo transitivo direto e indireto1. É este o caso da frase em análise, na qual «a tarde» desempenha a função de complemento direto e «na sala de jogos» de complemento oblíquo.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Celso Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ed. Ática.

Pergunta:

«A ansiedade e stresse predominam na sociedade hodierna.»

A frase está errada, porque necessita do vocábulo o antes de stresse?

A minha dúvida é a seguinte: não se pode considerar que há elipse do o?

Agradecido.

Resposta:

A frase pode ser apresentada sem recurso ao artigo definido no segundo sintagma nominal.

O artigo definido usa-se tipicamente para designar entidades específicas:

(1)    «O livro»

(2)    «A casa»

O falante usa expressões como as apresentadas em (1) e (2) se considerar que o seu interlocutor está na posse de informação para identificar o livro concreto de que se fala ou a casa em particular.

Quando existem sintagmas nominais coordenados, cada um deles poderá ser determinado pelo artigo definido:

(3)    «A ansiedade e o stresse predominam na sociedade hodierna.»

Não obstante, é possível, no caso de sintagmas nominais coordenados, omitir o artigo definido que determina o segundo sintagma1:

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