Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A dúvida surge na seguinte frase:

«Na segunda parte do trabalho, pretendeu-se determinar as constantes cinéticas da invertase de S. bayanus

A construção frásica «pretendeu-se determinar» está correta, ou deveria ser «pretendeu determinar-se»? Ou será que ambas são aceites?

Na Gramática do Português, volume II (organizada por Eduardo Buzaglo Paiva Raposo, Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, Maria Antónia Coelho da Mota, Luísa Segura e Amália Mendes, publicada pela Fundação Gulbenkian), no sub-capítulo "Propriedades dos verbos auxiliares", a secção sobre construção passiva pronominal apresenta os exemplos «Pretende-se corrigir os exames antes do fim do mês», «Pensou-se expulsar os diplomatas bizantinos» ou «Lamentou-se perder as chaves da casa» (p. 1249) como estando gramaticalmente corretos.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis, como explicam Cunha e Cintra na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (pp. 314-316), ou seja, o pronome clítico pode acompanhar tanto o primeiro verbo como o segundo:

(1) «Na segunda parte do trabalho, pretendeu-se determinar as constantes cinéticas da invertase de S. bayanus.»

(2) «Na segunda parte do trabalho, pretendeu determinar-se as constantes cinéticas da invertase de S. bayanus.»

Se o efeito de sentido que se pretende for o de uma construção de se impessoal, que expressa um agente da ação indefinido, o clítico se deve ser colocado junto ao verbo pretender, como na frase (1).

Disponha sempre!

Pergunta:

«Pois que adianta querer ser isto tudo se eu me vejo como um incompleto íon!»

Sobre esta sentença, tenho três indagações:

1. Nesta sentença, a locução "pois que" equivale a que tipo de conjunção? Ou ainda: qual o valor conjuntivo do termo "pois que"?

2. Caberia também um sinal de interrogação ao final desta sentença?

3. Caberia uma vírgula após a palavra tudo?

Obrigado.

Resposta:

Sem um contexto mais alargado, a frase apresentada é de difícil análise. Não obstante, estamos em crer que pois é usado como marcador conversacional, sendo que um determinante interrogativo, que introduz, portanto, uma frase interrogativa.

A locução «pois que» introduz orações subordinadas causais, atribuindo ao nexo um valor de causalidade, como em (1):

(1) «Vou contigo ao café, pois que já terminei os meus afazeres.»

No entanto, na frase apresentada, a oração «(Pois) que adianta querer fazer isto tudo» não é uma subordinada causal (aliás, se assim fosse, a frase teria duas orações subordinadas e nenhuma subordinante) mas, antes, a oração subordinante, na qual se encaixa a oração subordinada adverbial condicional «se eu me vejo como um completo íon». A palavra pois, que abre a frase, a ocorrer num contexto dialogal, será um marcador conversacional, que assume a função fática de chamar a atenção do interlocutor, assegurando a continuidade da conversação1.

A frase apresentada deveria terminar com um ponto de interrogação, porque, de facto, configura uma frase interrogativa direta.

Relativamente ao uso de vírgula antes da oração subordinada condicional, introduzida pela conjunção se, este não se revela obrigatório. Poderá, no entanto, ser usada vírgula a separar as duas orações, caso se pretenda realçar o conteúdo da subordinada, afastando-a da oração subordinante.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Lopes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2670-2671.

A palavra e o seu dono
Da (não) neutralidade das palavras

O caso que envolveu a Câmara Municipal de Lisboa sobre os dados pessoais enviados à Embaixada da Federação da Rússia, respeitantes aos três imigrantes russos em Portugal  promotores de  uma manifestação contra a prisão, em Moscovo, do oposicionista Alexei Navalny motivou o uso na imprensa de diferentes verbos e substantivos cujos valores a professora Carla Marques analisa neste apontamento. 

Pergunta:

Visitar a vossa página tem sido das melhores coisas que venho fazendo de um tempo para cá. O rigor e a facilidade com que descrevem/explicam são invejáveis!

Hoje trago mais uma pergunta, desta vez, no campo da análise sintática. Ei-la:

Gostava de saber que função sintática desempenha o grupo destacado, na frase abaixo:

«Em cada poste estava encostado um ramo de palmeiras

Eu considerei como complemento direto, pois responde à pergunta «o quê?» feita à locução verbal «estava encostado». Porém, há pessoas que classificam como sujeito. Neste prisma, gostaria de entender se há lógica em classificar tal expressão como sujeito.

Obrigado

Resposta:

O constituinte «um ramo de palmeiras» desempenha, na frase em questão, a função sintática de sujeito.

A identificação da função de sujeito não se pode limitar a colocação à colocação das questões «o que?» e «quem?» ao verbo porque estas poderão não indicar com fiabilidade a função desempenhada pelo constituinte interrogado. Veja-se como a questão «quem?», quando colocada ao verbo, tanto pode ficar associada a um constituinte com função de sujeito (1) como de complemento direto (2):

(1) «O João viu o filme.» (Quem viu o filme? – O João. = «O João» é sujeito)

(2) «A empresa contratou o João.» (Quem contratou a empresa? – O João. = Mas! «O João» é complemento direto)

De igual modo, a questão «o que?» pode ficar associada a um constituinte com função de complemento direto (3) ou de sujeito (4):

(3) «O João comeu uma maçã.» (O que comeu o João? – Uma maçã. = «uma maçã» é complemento direto)

(4) «Dói-te a cabeça.» (O que te dói? – A cabeça. = «a cabeça» é sujeito)

Um dos processos de identificação do sujeito mais fiáveis corresponde à possibilidade de substituição do constituinte pelos pronomes pessoais (ele(s) / ela(s)) ou pelo pronome demonstrativo (isto). Assim, se se aplicar este teste à frase apresentada, veremos que o constituinte «um ramo de palmeiras» é compatível com a substituição por ele:

(5) «Ele estava encostado em cada poste.»

O mesmo constituinte já não admite a substituição pelo pronome -o (que indica a presença de um complemento direto), como se constata pela agramaticalidade da frase que gera:

(6) «*Em cada poste estava-o encostado.»

Refira-se, por fim, que o lugar em que o constituinte surge na frase não é, por si só, indicativo de função. Assim, um constituinte com a função de sujeito tanto pode surgir antes do verbo como depois (como a frase a...

Pergunta:

Gostaria de saber como funciona a obrigatoriedade ou não dos pronomes o ou a, ou seja, se é obrigatório o uso, conforme estes exemplos:

– Conheces estes livros?

– Não, não conheço.

ou:

– Conheces estes livros?

– Não, os não conheço.

 

Obrigada.

Resposta:

O uso do pronome na frase apresentada não é obrigatório, exceto em contextos de uso muito formais. Deste modo, a sua omissão não constitui erro.

A situação presente em (1) constitui um caso de elipse, que corresponde à «omissão de material linguístico sem que essa omissão obste à transmissão integral dos conteúdos.» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2351) :

(1) «– Conheces estes livros?

         – Não, não conheço.»

 A elipse ocorre em situação em que é possível recuperar as expressões linguísticas omitidas, uma vez que estas ocorrem antes (ou depois) no enunciado ou integram o contexto situacional partilhado pelos falantes.

Disponha sempre!