Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «no encontro histórico de 1843 [de Garrett] com Passos Manuel, que serviu de pano de fundo ao romance e à deambulação...», qual seria a função sintática de «de pano de fundo»? Seria complemento oblíquo?

Agradeço desde já a ajuda.

Resposta:

O constituinte «de pano de fundo» tem a função de complemento oblíquo.

O verbo servir pode ser usado como

(i) intransitivo: «Este vestido serve.»

(ii) transitivo direto (e indireto): «Ele serve o vinho (aos convidados) depois da refeição.»

(iii) transitivo indireto: «Ele serve de modelo.»

Neste último caso, o verbo rege a preposição de, que introduz o complemento oblíquo.

O facto de os constituintes «de modelo» e «de pano de fundo» desempenharem a função de complemento oblíquo comprova-se também por não poderem ser omitidos da frase nem ser possível substituí-los pelo pronome lhe.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase: «Estava calor, o que me transtornou bastante», a oração é substantiva relativa (por ser introduzida por «o que» ou é adjetiva explicativa, por retomar o antecedente?

Desde já, muito obrigada! Bem hajam!

Resposta:

 Em contexto escolar não universitário, a oração relativa introduzida por «o que» é considerada substantiva, quando não tem antecedente, como em (1):

(1) «Sei o que queres.»

Tendo antecedente, que será, à partida, a totalidade da oração subordinante, a oração relativa introduzida por «o que» considera-se adjetiva relativa com valor explicativo, como acontece na frase apresentada pela consulente:

(2) «Estava calor, o que me transtornou bastante.»

Neste caso, o antecedente de «o que» é a oração subordinante «Estava calor», pelo que estamos perante uma oração adjetiva relativa, que tem a função de modificador de frase1.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Nascimento e Lopes, Domínios. Plátano Editora, pp. 213-214.

Pergunta:

Entendo que o verbo consentir seja regido pela preposição com.

Mas tenho dúvida se há alguma mudança de regência quando esta passa de verbal para nominal no caso da expressão «em consentimento», como no exemplo: «Pergunto-me se você não fecharia os olhos em consentimento com/a práticas questionáveis como essas.»

Peço ainda a gentileza de me esclarecerem se minha suposição está correta: trata-se, de fato, de uma mudança de regência verbal para nominal?

Desde já, agradeço o apoio e cumprimento a todos da equipe do Ciberdúvidas por esse trabalho tão valioso.

Resposta:

De acordo com Celso Luft1, o verbo consentir pode reger as preposições em ou com (construção muito pouco usada):

(1) «Consente (n)a adoção de medidas de emergência.»2

(2) «Tinha dobrada obrigação de não consentir com os intentos ímpios dos idólatras.» (Vieira: Torres)2.

Já o nome consentimento pode reger as preposições para, em e, mais raramente, com3:

(3) «O homem que pede à opinião pública consentimento para amar uma ou outra, é um tolo.» (Camilo: Fernandes)4

(4) «Consentimento em compras e vendas, em soluções e medidas, atos, etc.»4

(5) «Consentimento [acordo, harmonia] dos atos com as palavras, da prática com a teoria.»4

O substantivo consentimento forma-se a partir do verbo consentir, pelo que se poderá falar de uma alteração da regência verbal (de consentir) para uma regência nominal (de consentimento).

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Prático de Regência Verbal. Editora Ática, p. 141.

2. Exemplos apresentados pelo autor. Cf. Id., Ibid.

Pergunta:

Tendo em conta as diversas explicações avançadas pelas diversas gramáticas existentes no mercado e pelos recursos fornecidos pelas editoras, continua a haver exemplos de frases que suscitam dúvidas quanto à classificação dos constituintes que tanto podem ser modificadores, como complementos oblíquos ou até complementos indiretos.

É o caso das frases:

«A Joana trabalha em Lisboa.» («em Lisboa» – é modificador ou c. oblíquo?)

«O que aconteceu deve-se à tua falta de trabalho.» («à tua falta de trabalho» – é complemento oblíquo ou complemento indireto?)

E se fosse «O que aconteceu deve-se à tua mãe»? (à tua mãe» – não seria complemento indireto – deve-se-lhe?)

Obrigada.

Resposta:

Nas frases apresentadas, «em Lisboa» tem a função de modificador do grupo verbal, e «à tua falta de trabalho / à tua mãe», de complemento oblíquo.

Para distinguir um constituinte com função de complemento oblíquo de um com função de modificador do grupo verbal, podem usar-se dois testes, que aplicaremos à frase aqui transcrita em (1):

(1) «A Joana trabalha em Lisboa.»

(i) Teste pergunta-resposta:

               (1a) P: «O que é que a Joana faz em Lisboa?»

                 R: «Trabalha.»

(ii) Teste de clivagem:

               (1b) «?É trabalhar em Lisboa que a Joana faz?»

               (1c) «É trabalhar que a Joana faz em Lisboa?»

Ambos os testes pretendem verificar se é possível afastar o constituinte do verbo ou se este afastamento determina uma construção agramatical. No caso da frase (1), os testes mostram que o constituinte «em Lisboa» pode ser afastado do verbo trabalhar, o que indica que o constituinte não é complemento do verbo (ou seja, não é complemento oblíquo, mas antes modificador do grupo verbal.)

Relativamente ...

Pergunta:

Um amigo meu mostrou-me uma conversa que ele estava a ter com alguém, e a pessoa disse algo que para ele foi curioso. Ele respondeu com «deixas-me curioso», ao que eu comentei a dizer que «deixas-me curioso» está errado, que devia ser «deixaste-me curioso». Já se passou um ano e continuamos a teimar sobre isto.

Para mais esclarecimento, eles nunca tinham falado antes, e não me lembro da conversa ao certo, mas foi algo do género:

«–Sim, sei o teu nome porque já te conhecia de vista.

– Ui, deixas-me curioso.»

Queria então saber se é «deixas-me» ou «deixaste-me».

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases são possíveis, embora com uma ligeira diferença de sentido.

A frase que inclui o verbo conjugado no presente do indicativo aponta para a intenção de expressar um estado episódico que se prolongará durante um período de tempo, que não será necessariamente longo1:

(1) «Deixas-me curioso.»

A frase que inclui o verbo flexionado no pretérito perfeito do indicativo descreve uma situação que teve lugar no passado e que, no momento da enunciação, se encontra já concluída/fechada.

(2) «Deixaste-me curioso.»

Assim, em (1), a curiosidade prolongou-se até ao presente e durará algum tempo, enquanto em (2), a curiosidade foi momentânea e no presente já não tem lugar2.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 514-516.

2. Cf. Idem, ibid., pp. 517-518.