Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sou professora de Português em Espanha e, com frequência, observo que os meus alunos elaboram frases como:

– Gostaste do filme? Sim, gostei dele.

– Pratico natação e como gosto muito dela, vou à piscina duas vezes por semana.

Produz-me muita estranheza este uso do pronome pessoal para substituir realidades que não são pessoas.

Nas minhas aulas, eu nunca uso o pronome pessoal nestas estruturas. Simplesmente respondo:

– Gostaste do filme? Sim, gostei. / Gostei, gostei muito.

– Pratico natação e como gosto muito, vou à piscina duas vezes por semana.

Porém os meus alunos fazem estas pronominalizações de forma natural. Duvido que seja por influência do espanhol, dado que a construção deste verbo é completamente diferente.

Penso que não é correto, mas, às vezes, já me fazem duvidar. Gostava de poder explicar bem o porquê e como não encontrei informação sobre o assunto, pensei que era uma boa questão para este espaço.

Antes de acabar, queria deixar constância do meu mais sincero agradecimento pela extraordinária ajuda que este site me oferece na preparação das minhas aulas.

Muito obrigada!'

Resposta:

Agradecemos as gentis palavras e congratulamo-nos pelo auxílio que este espaço lhe fornece.

Como é sabido, o verbo gostar seleciona complementos regidos pela preposição de. No entanto, uma vez que esta preposição não veicula um valor semântico, os complementos que introduz são, com frequência, e sobretudo em situações de conversação informal, omitidos1:

(1) « ̶  Gostas de chocolates?

         ̶  Gosto [de chocolates].»

Embora esteja elidido, este constituinte é pressuposto pelos falantes de forma a garantir a comunicação.  

Quando o complemento do verbo gostar é anafórico, pode assumir a forma disto ou dele/a(s):

(2) «Ele conhece o João há anos. Gosta dele [do João] por essa razão.»

(3) «Ele decidiu arrumar a garagem. Gosto disso [de ele ter decidido arrumar a garagem] porque preciso de espaço.»

Como assinalam estas frases, parece existir uma tendência para usar o pronome ele em referência a antecedentes com o traço [+humano], sendo o pronome isso reservado para antecedentes com...

Pergunta:

Vi  [no Ciberdúvidas] que o verbo perguntar pede objeto indireto.

Porém. o Google apresenta um dicionário exibindo o mesmo verbo como transitivo direto na primeira entrada com o sentido de "fazer pergunta(s) a; interrogar", e cita como exemplo a frase "o detetive perguntou todos os suspeitos". (Para abrir a página, procurar por "dicionário perguntar".)

Gostaria que pudessem explicar o por quê da diferença.

Obrigado!

Resposta:

O verbo perguntar admite um uso transitivo e um uso intransitivo.

Como verbo intransitivo, pode surgir em frases como (1), sem qualquer complemento:

(1) «‒ Vai ao guichê e pergunta.»

Como verbo transitivo, o verbo pode ser:

(i) transitivo direto, surgindo em frases com complemento direto (2):

(2) «Ela perguntou o motivo da revolta.»

(ii) transitivo indireto, construindo-se com complemento indireto (3):

(3) «É a sua vez de perguntar ao João.»

(iii)  e com complemento direto e indireto (4):

(4) «Ele perguntou ao João as suas intenções.»

Sendo o verbo perguntar um verbo dicendi, nos casos em que introduz discurso indireto, a pergunta relatada será o complemento direto do verbo, como se observa nas frases seguintes, nas quais se sublinha o complemento direto:

(5) «Perguntou se eu vinha à festa.»

(6) «Perguntou como faria para regressar a casa.»

(7) «Perguntou para que servia aquele aparelho.»

A utilização mais frequente do verbo parece corresponder ao preenchimento do argumento com função de complemente indireto por uma entidade com valor semântico [+HUM]: «perguntar algo a alguém». Não obstante, no Dicionário Houaiss refere-se que esta entidade [+HUM] poderá surgir também, em alguns casos, como complemento direto do verbo:

(8) «O detetive perguntou todos os suspeitos.» (exemplo apresentado no Dicionário Houaiss)

Neste caso, o verbo tem uma natureza de transitivo direto e significa “fazer pergunta(a) a; interrogar”. Refira-se, ainda, que...

Pergunta:

Tenho a dúvida se “obedecido” pode ser um adjetivo ou se é apenas o participo passado do verbo obedecer. Verifiquei no Portal da Língua Portuguesa que a palavra obedecido está como adjetivo.

Podem-me dar exemplos de obedecido como adjetivo, isto é, se a mesma existir como tal.

Obrigada

Resposta:

A forma obedecido corresponde ao particípio do verbo obedecer. Como é sabido, em diversos casos o particípio pode ser recategorizado como adjetivo. Também com o particípio obedecido esta situação tem lugar.

Não obstante, uma pesquisa efetuada nCorpus do Português, de Mike Davies, permite concluir que a maioria das situações de uso da forma ocorre enquanto particípio:

(i) na formação de tempos compostos:

(1) «Ele tem obedecido às ordens.»

(ii) em orações passivas1:

(2) «As regras são obedecidas (pelos funcionários).»

(iii) em orações participiais:

(3) «Ele pode entrar, obedecido o disposto na lei.»

As situações em que o particípio é convertido em adjetivo parecem ser em número mais reduzido, uma vez que o seu aparecimento em orações copulativas corresponde sobretudo a uma construção passiva, muitas vezes com elisão do agente da passiva (como em (2)). Podemos, no entanto, identificar usos de obedecido na categoria de adjetivo em frases co...

Pergunta:

Conforme resposta dada a consulta datada de 22 de janeiro de 2018, aliás feita por mim, a forma canônica da frase apresentada naquela ocasião é a seguinte:

«Ele era de opinião que céu cinzento e gotas de chuva nas janelas tiram o ânimo e causam melancolia.»

Em sendo assim, posso considerar que a oração subordinada («que céu cinzento...») se classifica como apositiva em relação ao termo «opinião»?

Obrigado.

Resposta:

A oração classificada, de acordo com diferentes perspetivas, como tendo a função sintática de modificador do nome restritivo1 ou de complemento do nome. 

De acordo com uma perspetiva mais recente, a oração «que céu cinzento e gotas de chuva nas janelas tiram o ânimo» é uma oração dependente do nome opinião. Neste âmbito, na Gramática do Português (coordenada por Raposo et al.) propõe-se que, neste contexto, as orações poderão desempenhar duas funções: complemento de nome e modificador restritivo de nome (oração especificativa2, na terminologia usada na referida gramática).

As orações com função de complemento de nome completam o sentido daquele e podem ser substituídas por um pronome demonstrativo neutro:

(1) «Ele apresentou a prova de que vieram a casa dele.» (= «Ele apresentou a prova disso.»)

As orações com função de modificador explicitam o conteúdo do nome que as antecede. Não é possível substituí-las por um pronome demonstrativo neutro:

(2) «Ele referiu o facto de que encontrara a Rita.» («*Ele referiu o facto disso.»)

Em casos como o ilustrado por (2), o nome e a oração que o modifica correspondem a dois constituintes independentes, o que justifica o facto de o nome pode ser substituído pelo pronome demonstrativo neutro, mantendo-se a oração na frase, o que não se verificou em (1), pois o nome e a oração formam um  só constituinte:

(2a) «Ele refer...

Pergunta:

Examinem-se as seguintes frases:

«Carlota disse ao filho para não voltar à cidade.»

«Ela lhe pediu para não chamá-la de Doquinha.»

«No auge da aflição, seu companheiro gritava-lhe para não sair do lugar.»

Gostaria de saber sobre a legitimidade das orações iniciadas por para. São um caso de contaminação sintática? De coloquialidade? Como analisar esse tipo de orações?

Obrigado.

Resposta:

É legítima a opção pela preposição para nas frases apresentadas.

Na Gramática do Português, orientada por Raposo et al., descrevem-se as orações subordinadas infinitivas completivas introduzidas pela preposição para como um caso particular de complemento direto selecionado por verbos diretivos. Estes verbos «designam atos de fala que representam ordens ou pedidos» (Barbosa e Raposo in ibidem, p. 1929). Em particular os verbos dizer, implorar, insistir e pedir constroem-se com orações introduzidas pela preposição para, que, neste caso particular, funciona como um complementador (termo que introduz a oração completiva)1.

Assim, uma vez que os verbos da oração subordinante nas frases apresentadas têm um valor diretivo, o recurso à preposição para é aceitável e encontra-se descrito, como vimos acima.

Disponha sempre!

 

1. A este propósito, ver também esta resposta.