Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Numa sequência de frases como «Eu não sou falador. Já em criança era assim.», podemos considerar que «era» é um deítico que identifica o locutor?

Desde já, muito obrigada!

Resposta:

A forma era, no contexto apresentado, tem a função de deítico pessoal (que acumula com a de deítico temporal).

As frases apresentadas convocam os conceitos de deixis e anáfora.

Com efeito, esta sequência de frases envolve uma cadeia anafórica, na medida em que a elipse antes da forma era é interpretada anaforicamente em relação ao sujeito da frase anterior (eu).

Assim sendo, uma vez que a interpretação do pronome eu está dependente da situação de enunciação, que permitirá identificar o referente (neste caso, o locutor da frase), estamos em presença de um deítico pessoal. A primeira pessoa do singular volta a manifestar-se na flexão verbal da forma era, pelo que se considera que esta constitui também um deítico pessoal.

Disponha sempre!

Pergunta:

A frase «chamas-te Maria», transformada para a voz passiva analítica, ficaria «é chamada de Maria» ou «és chamada de Maria»?

Obrigado.

Resposta:

A frase apresentada não admite forma passiva.

Quando um verbo é construído de forma reflexa, o sujeito e o complemento direto têm a mesma referência extralinguística, como acontece em (1):

(1) «Eu vi-me ao espelho.»

Nestes casos, a forma passiva não é admitida porque gera frases agramaticais:

(2) «*Eu fui visto por mim ao espelho.»

A mesma agramaticalidade terá lugar se tentarmos colocar a frase apresentada pelo consulente na forma passiva:

(3) «*Tu és chamada por ti Maria.»

O verbo chamar, no entanto, admite um uso transitivo, como acontece em (4):

(4) «O João chama a Maria (de) chefe.»

Neste caso, sujeito e complemento direto têm duas referências extralinguísticas distintas e a frase já admite forma passiva:

(5) «A Maria é chamada pelo João (de) chefe.»

Estas formas são próximas das propostas pelo consulente e comprovam que são construções resultantes de frases ativas com verbos transitivos que têm dois argumentos, sujeito e complemento direto, que representam entidades distintas, pelo que não são equivalentes à frase apresentada inicialmente.

Pergunta:

O que é lexicalização e composicionalidade ?

Resposta:

A lexicalização é o fenómeno que consiste em integrar no léxico uma determinada unidade. A integração de um vocábulo novo no léxico é um exemplo deste fenómeno.

A composicionalidade é uma abordagem teórica que, no caso da linguística, parte do princípio que o significado do todo é composto pelo significado das partes que o compõem a que se acrescentam as regras que regem essa junção. Assim, o sentido de uma expressão composta resulta do significado das suas partes ordenadas de determinada forma, bem como o significado de uma frase é resultado do significado dos seus constituintes organizados de determinada forma.

Poderemos ainda opor a noção de sentido lexicalizado à de sentido composicional. Assim uma palavra com sentido lexicalizado será aquela cujo sentido já não depende de cada um dos seus elementos. É o que acontece, por exemplo, com água-pé, cujo significado de «bebida alcoólica» não está relacionado com os sentidos das palavras água ou pé, tomadas individualmente. Já uma expressão como «dia de Natal» admite uma leitura composicional que é resultado do contributo dado pelo significado individual de cada constituinte.

Disponha sempre! 

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