Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«A luta por causas nobres exultava-o.»

A frase está correta?

Resposta:

A frase está incorreta.

O verbo exultar, que significa «sentir grande prazer; ter grande alegria» (Dicionário Priberam), é um verbo intransitivo, pelo que não se constrói com complemento(s).

Na frase apresentada, o verbo surge acompanhado de um complemento direto, o pronome pessoal o, pelo que não é aceitável.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Começou a ajudar a missa teria talvez uns doze anos», porque é que o infinitivo ter é usado no condicional?

Não era melhor se utilizássemos gerúndio?

«Começou a ajudar a missa, talvez, tendo uns doze anos», ou bem «Começou a ajudar a missa, quando teria talvez uns doze anos»?

Obrigado pela disponibilidade.

Resposta:

Ambas as opções, pelo condicional ou pelo gerúndio, são possíveis e estão corretas. 

A diferença entre elas reside no valor que se associa ao tempo/modo selecionado. Assim, se se optar pelo condicional, estar-se-á a veicular um valor de incerteza ou de probabilidade incerta:

(1) «Começou a ajudar a missa teria talvez uns doze anos.»

Neste caso, o locutor, ao optar pela forma teria, expressa a sua incerteza relativamente à idade do sujeito referido, o que é reforçado pelo uso do advérbio talvez.

Note-se também que é possível atestar o uso desta construção com condicional com exemplos registados no Corpus do Português de Mark Davies:

(2) «Ainda agora vejo dois sujeitos banhados que jogavam o entrudo, teria eu cinco anos [...] (Machado de Assis, Memorial de Aires)

(3) «[...] mas lembro-me com nitidez da campanha presidencial de Norton de Matos, teria eu quinze anos, e da animação que ela provocou no liceu.» (entrevista Melo Antunes)

No exemplo (1) seria também possível ocorrer a conjunção quando:

(4) «Começou a ajudar a missa, quando teria uns doze anos.» 

Se se usar o gerúndio, está-se, neste caso, a transmitir um valor de temporalidade:

Pergunta:

Qual das frases se encontra correta: «O Joaquim está lá na Alemanha» ou «O Joaquim está lá para a Alemanha»?

Já ouvi bastantes vezes a preposição para juntamente com o advérbio de lugar , mas nunca tive a certeza de estar certa gramaticalmente.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas. Todavia, a frase que inclui a preposição para será mais comum no registo familiar.

Tanto a preposição em como a preposição para podem contribuir para o sentido de valor de localização estática, como acontece nas frases:

(1) «O Joaquim está na Alemanha.» (na = em + a)

(2) «O Joaquim está para a Alemanha.»

Não obstante, a preposição para é usada sobretudo com um valor espacial direcional:

(3) «Ele vai para Lisboa.» (para = lugar para onde)

A sua utilização com valor de localização espacial estática surge, como ficou dito no início, em contexto familiar, sendo a preposição em considerada mais correta do ponto de vista da norma padrão.

O advérbio nas frases indicadas associa-se sobretudo a um valor de realce da localização denotada pelo sintagma «na/para a Alemanha», indicando ainda afastamento do locutor. Trata-se de um uso mais frequente também em registo familiar.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

No poema "A morte de Tapir" de Olavo Bilac, vejo os seguinte versos:

Quanta vez do inimigo o embate rechaçando
Por si só, foi seu peito uma muralha erguida,
Em que vinha bater e quebrar-se vencida
De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!

Dúvida: a expressão «quanta vez» significa o mesmo que «quantas vezes»? Nunca a vi ser usada no singular. É possível isso? Qual é a interpretação correta?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «quanta vez» é equivalente a «quantas vezes» e assinala a repetição de uma situação tomada na sua singularidade. A utilização desta expressão no singular não será tão frequente quanto a da expressão no plural. Não obstante, a partir de uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, é possível assinalar o seu uso em obras literárias, associada a frases exclamativas:

(1) «Ah, quanta vez, na hora suave/ Em que me esqueço ,/ Vejo passar um voo de ave/ E me entristeço!» (Fernando PessoaArquivo Pessoa)

(2) «Quanta vez seus mestres dos mistérios sagrados sacerdotes, todos eles, da mais alta cultura e reconhecida virtude - lhe tinham ensinado a santa doutrina, os mandamentos supremos...!» (José Régio, Os avisos do Destino)

(3) «Ai, quanta vez então dentro em meu peito/ Vago terror penetra, como um raio» (Machado de Assis, Falenas)

Repare-se ainda que quanto/a pode surgir em outras expressões, também singulares:

(4) «Quanta felicidade!»

(5) «Quanto cansaço!»

Disponha sempre!

Pergunta:

Em «O leitor toma conhecimento apenas do que o detetive vê e ouve», «do que o detetive vê e ouve» é complemento nominal de conhecimento. O pronome relativo que é objeto direto, porque toma o lugar de «aquilo».

Mas se eu fosse analisá-lo dentro do complemento, poderia ainda usar a classificação de "objeto direto", ou há outra mais precisa?

Resposta:

A análise proposta pelo consulente está correta.

No interior do grupo nominal «conhecimento apenas do que o detetive vê e ouve», o pronome relativo que não desempenha nenhuma função sintática, pois mantém uma relação sintática com os verbos coordenados «vê e ouve» e não com conhecimento. A palavra que estabelece relação direta com este nome é a preposição de, que introduz o complemento de nome (nominal) que é argumento do nome.

Disponha sempre!