Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se todas as frases seguintes estão corretas e, caso não estejam, qual a razão para isso.

Gostaria também de saber que diferenças de significado existem entre as diferentes frases, caso existam.

Por fim, gostaria que, se possível, apresentassem as regras gerais que determinam o uso destes três tempos verbais.

Muitíssimo obrigada por este maravilhoso serviço!

(1) Foi pena que os teus irmãos não pudessem vir ontem à festa. Foi pena que os teus irmãos não tenham podido vir ontem à festa. Foi pena que os teus irmãos não tivessem podido vir ontem à festa.

(2) Era possível que elas viessem ao ginásio. Era possível que elas tivessem vindo ao ginásio. * Era possível que elas tenham vindo ao ginásio.

*(Não está correta, mas gostaria de perceber a razão. Está relacionada com o uso do imperfeito do indicativo no início? Existe alguma regra geral que determine a impossibilidade de usar o pretérito perfeito composto do conjuntivo quando se usa o imperfeito do indicativo?).

(3) Por maiores que fossem os problemas, ele não desistiu. Por maiores que tenham sido os problemas, ele não desistiu. Por maiores que tivessem sido os problemas, ele não desistiu.

(4) Esperava que o teu irmão trouxesse a Joaninha. Esperava que o teu irmão tivesse trazido a Joaninha.

(5) Ele queria que tu fosses ao escritório dele ontem à tarde. Ele queria que tu tivesses ido ao escritório dele ontem à tarde.

(6) Mesmo que eles o vissem, nunca teriam podido falar com ele. Mesmo que eles o tivessem visto, nunca teriam podido falar com ele. Mesmo que eles o tenham visto, nunca teriam podido falar com ele.

(7) Foi pena que a Joana não viesse a nossa casa ontem. Foi pena que a Joana não tivesse podido vir a nossa casa ontem. Foi pena que a Joana não tenha vindo a nossa casa ontem.

(8) Talvez ele não tenha podido ir à reunião. Talvez ele não pudesse ir à reunião. Talvez ele não tivesse podido ir à reu...

Resposta:

Nas frases apresentadas pela consulente, há várias situações a considerar.

Vejamos em primeiro lugar as frases que incluem uma oração subordinada completiva. Nestes casos, o tempo verbal da oração subordinada depende do da oração subordinante. Assim, quando o verbo da oração subordinante se encontra no pretérito imperfeito ou no pretérito perfeito do indicativo, o verbo da oração subordinada surge no imperfeito do conjuntivo (no Brasil, subjuntivo), indicando que a situação descrita na oração subordinada se localiza num intervalo de tempo posterior ao da situação descrita na subordinante. É o que se verifica na seguinte frase (selecionada entre as que a consulente apresenta):

(1) «Esperava que o teu irmão trouxesse a Joaninha.»

(2) «Era possível que elas viessem ao ginásio.»

No entanto, esta mesma construção permite localizar a situação da subordinada num intervalo de tempo anterior ao da situação da subordinante, se introduzirmos na frase um advérbio de tempo, como acontece nas frases (3) a (5):

(3) «Foi pena que os teus irmãos não pudessem vir ontem à festa.»

(4) «Foi pena que a Joana não viesse a nossa casa ontem

(5) « Ele queria que tu fosses ao escritório dele ontem à tarde

O aparecimento do verbo da oração subordinada no pretérito perfeito composto fica dependente do verbo da subordinante, que terá de ocorrer no presente do indicativo. Nesta situação, o pretérito perfeito composto localiza a situação num tempo anterior ao do da subordinante. As frases (6) e (7) enquadram-se nesta descrição:

(6) «É pena que os teus irmãos não tenham podido vir (ontem) à festa.»

(7) «É pena que a Joana não tenha vindo a nossa casa (ontem).»

Cumplicidade e consonância
Duas palavras da atualidade política portuguesa... nada unívocas no seu uso

Em Portugal, as palavras cumplicidade e consonância têm sido usadas, por vezes de forma pouco clara, para caracterizar a relação entre o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, o que motivou o apontamento da professora Carla Marques, que procura os significados destas palavras. 

Pergunta:

Ouvi o Sr. primeiro-ministro [de Portugal] dizer:

«O Governo veio apresentar ao Presidente da República a proposta de que seja declarado o Estado de Emergência com uma natureza ...»

Eu diria «...a proposta que seja declarado...»

Quando em dúvida faço a pergunta: «que proposta vai apresentar?» e não «de que proposta vai apresentar?»

Agradecia uma clarificação deste ponto.

Resposta:

A frase apresentada está correta, sendo a preposição de opcional.

Tal como os verbos, também os nomes (ou os adjetivos) podem ter como complemento um sintagma nominal ou uma oração completiva. Sempre que o complemento é um sintagma nominal, a preposição é obrigatória, como acontece em (1):

(1) «Ele apresentou uma proposta de lei.»

Quando o complemento é oracional, a preposição não é obrigatória, podendo ser omitida:

(2) «Eu tenho a garantia (de) que ele vai tratar da questão.»

O mesmo acontece na frase apresentada pelo consulente:

(3) «O Governo veio apresentar ao Presidente da República a proposta (de) que seja declarado o Estado de Emergência com uma natureza ...»

O teste apresentado pelo consulente não funciona porque o nome proposta não rege nenhuma preposição. Nestes casos, quando o nome não seleciona nenhum preposição, o seu complemento é introduzido, por defeito, pela preposição de1. É o que acontece, por exemplo, com o nome sensação na frase seguinte:

(4) «Ele teve a sensação de que ia começar a chover.»

Acresce, ainda, que em termos de correção a supressão da preposição, sobretudo em orações que restringem o significado do nome, tende a ser vista como um desvio à norma, pelo que, num registo cuidado, deve evitar-se a sua omissão2.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento da questão, cf. Pilar Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português.

Pergunta:

Quando posso usar a contração pelos e quando é obrigatório usar «por os»?

Obrigada

Resposta:

De uma forma geral, quando se dá o encontro entre a preposição e o artigo definido, a contração das duas palavras tem lugar:

(1) «Eu vou pelo caminho das rosas.»

Habitualmente, as preposições que contraem são a, de, em e por.

Há, todavia, circunstâncias que podem levar à inexistência de contração. Tal acontece quando a preposição não integra a oração subordinada não finita que introduz:

(2) «Ele ficou zangado por [o João ir pelo caminho das rosas].»

(2a) «*Ele ficou zangado pelo João ir pelo caminho das rosas.»

Nesta frase, a oração não finita não inclui a preposição por, pelo que não há lugar a contração com o determinante o, o que fica patente na  agramaticalidade de (2a).

Com títulos de obras que comecem por determinante ou pronome pessoal, a contração, embora possa ter lugar, costuma ser evitada para não os alterar. A ter lugar, pode usar-se um apóstrofo para demarcar a fronteira entre a preposição e o determinante:

(3) «Ele perguntou por Os Lusíadas.»

(3a) »Ele perguntou pel’Os Lusíadas.»

Disponha sempre!

 

* assinala a agramaticalidade da frase.

Pergunta:

Na frase «Ele acusa-a de, por estar bem de saúde, se estar ralando para o que os outros sofrem...», a expressão «para o que os outros sofrem» desempenha a função sintática de complemento oblíquo ou modificador?

Obrigada.

Resposta:

O constituinte apresentado, retirado de uma frase de um artigo de Clara Ferreira Alves1, desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

Na frase apresentada, o verbo ralar é usado pronominalmente com o sentido de «não dar importância a». Com este sentido o verbo seleciona um complemento introduzido pelas preposições por ou para.

De modo a confirmar a função sintática desempenhada pelo constituinte, podemos recorrer à construção pseudoclivada, que assenta na estrutura «O que o SUJEITO fez foi SINTAGMA VERBAL». Esta construção não permite que os complementos do verbo surjam antes da forma foi. Apenas os modificadores do grupo verbal poderão ocupar esta posição. Simplificamos a frase para facilitar a análise:

(1) «Ela estava-se ralando para o que os outros sofrem.»

(1a) «O que Ela fez foi estar-se ralando para o que os outros sofrem.»

(1b) «*O que Ela fez para que os outros sofrem foi estar-se ralando.»

A inaceitabilidade da frase (1b) mostra que o constituinte «para o que os outros sofrem» não pode ser afastado do verbo, pelo que desempenha a função de complemento oblíquo.

Disponha sempre!

 

*assinala a inaceitabilidade da frase.

1. Clara Ferreira Alves, «Todas as cartas de amor são ridículas e outras nem chegam a sê-lo», in