Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sobre a adequação (semântica) inerente à expressão "golpe de Estado", não me parece aceitável dizer-se o seguinte:

«Estava a passar na rua e VI um golpe de Estado.?

Do ponto de vista semântico, perguntava-vos se podemos aceitar a frase ou se ela contraria o princípio da coerência.

Obrigado.

Resposta:

A frase apresentada é aceitável, embora possa ser aperfeiçoada no sentido de traduzir melhor a realidade observada.

Poderemos analisar a frase à luz da aspetualidade, no âmbito da semântica temporal. Neste âmbito, o verbo ver é usado com o valor de «assistir, presenciar», o que é compatível com a descrição de uma situação durativa, que, por seu turno, é também compatível com a realidade descrita pelo sintagma nominal «golpe de Estado».

Não obstante, considerando que a expressão «golpe de Estado» corresponde a «tomada inesperada do poder governamental pela força e sem participação do povo» (Dicionário Houaiss), não é previsível que toda a ação desenvolvida possa ser vista de uma rua por onde se passa. Assim, o mais natural é que o locutor tenha assistido a um intervalo de tempo compreendido no intervalo de tempo mais alargado que corresponde à situação «golpe de Estado».

Desta forma, a frase ficaria mais clara se esse intervalo de tempo fosse assinalada, como, por exemplo, em (1):

(1) « Estava a passar na rua e vi o início de um golpe de Estado.»

Disponha sempre!

Pergunta:

«...O temporal não há meio de parar...»

A frase é retirada de uma ficção.

O que quero saber é que neste contexto «o temporal» funciona como o sujeito ou um objeto anteposto?

Resposta:

O constituinte «o temporal» desempenha a função sintática de sujeito do verbo parar.

A frase é composta por uma oração subordinante, «não há meio de», e uma oração subordinada, «parar o temporal». Neste caso, o verbo haver está a ser usado como verbo impessoal transitivo, ou seja, trata-se de um verbo que não seleciona sujeito mas seleciona complemento. Com este uso, o verbo surge sempre na 3.ª pessoa do singular. Nesta frase em particular, a oração subordinante tem o significado de “não existir maneira de resolver uma dada situação”.

Será no interior da oração subordinada que teremos de identificar a função do sintagma nominal «o temporal». Assim, o facto de a flexão no plural deste sintagma levar o verbo a flexionar por um fenómeno de concordância leva-nos a concluir que o sintagma em questão desempenha a função de sujeito:

(1) «Não há meio de os temporais pararem.»

O mesmo é confirmado pela possibilidade de substituição do sintagma «o temporal» pelo pronome pessoa ele:

(2) «Não há meio de ele parar.»

Disponha sempre!

Finados e cemitério
As palavras do Dia dos Fiéis Defuntos

Em ano de pandemia, a proibição, em Portugal, de circulação entre concelhos leva a que muitas famílias não possam realizar a tradicional visita aos cemitérios em Dia de Finados. É esta a realidade que motiva a seleção das palavras finadoscemitério para o apontamento da  professora Carla Marques, emitido no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 1 de novembro de 2020.

Pergunta:

Na expressão «este ano», o demonstrativo este, habitualmente considerado deítico espacial, poderá ser considerado deítico temporal?

Resposta:

Na expressão em causa, o grupo nominal «este ano» poderá funcionar como um sintagma com função deítica temporal. É o que se verifica numa frase como (1), na qual o grupo nominal «este ano» aponta para o intervalo de um ano no qual se insere o momento de fala, valor que é assegurado pelo determinante este, que, assinalando proximidade, marca a sobreposição temporal entre o momento de fala e o intervalo temporal de 365 dias:

(1) «– Este ano ainda não fui à praia.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Agradecendo antecipadamente a vossa resposta, pergunto se todos os elementos que recuperam anafórica ou cataforicamente um referente podem ser considerados deíticos textuais.

Resposta:

Em termos gerais, no plano da deixis textual, os elementos que dependem referencialmente de outros podem ser considerados deíticos textuais.

Sempre que o conteúdo referencial de uma expressão depende do de outra expressão que tem um conteúdo referencial próprio, estamos perante um caso de referência textual. De forma global, as relações referenciais estabelecem-se entre uma expressão nominal plena, que tem um significado independente, e uma palavra que é referencialmente dependente. Esta relação leva que a expressão nominal plena funcione como antecedente, falando-se, então, de uma relação anafórica. Se a expressão referencial plena surgir depois da expressão dependente, falar-se-á de relação catafórica.

Existem, no entanto, casos específicos que terão de ser analisados de forma particular, que estão relacionados com as relações de referência, o seu tipo e com as classes que podem estabelecer essas mesmas relações, pelo que a questão colocada poderá ter de ser reequacionada em situações específicas1.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento desta questão, sugerimos, por exemplo, a leitura do Capítulo "Dependências Referenciais" de Maria Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2177-2227.