Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Os dicionários registam esparguete, termo mais usual em Portugal, e espaguete, considerado mais correto no Brasil.

Sendo a origem desta palavra o vocábulo italiano spaghetti (plural de spaghetto, diminutivo de spago – cordel), qual será a razão da epêntese do r em esparguete?

Na 3.ª edição (1977) do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, lê-se:

Espaguete – do italiano spaghetti «macarrão fino». Há a variante esparguete, devida à influência de espargo.

E no Dicionário da Língua Portuguesa (2008) da Porto Editora encontramos, quanto à etimologia, o seguinte: do italiano spaghetti x espargo.

«E o que têm os espargos [a] que ver com esparguete, para além de haver uma óbvia semelhança na forma desses dois vocábulos?» pergunta-se aqui [Sara Leite, "Cordelinhos à Portuguesa", in blogue Língua à Portuguesa, 3/11/2008]:

«[a] A palavra “espargo” vem do grego asparagos, “espargo”, pelo latim asparagu- (Infopédia).

Será que o verbo latino spargo (espalhar) também poderá ter tido influência em esparguete?...

Fico muito grato pela vossa atenção.

Resposta:

Sobre a etimologia da forma esparguete, usada em Portugal, aceita-se e é plausível a explicação dada por J. P. Machado. Ou seja, no aportuguesamento de spaghetti, operado na variedade lusa, a inserção da consoante r (a epêntese) deve-se à analogia com espargo, palavra que exibe tal consoante na posição medial.

Quanto à possibilidade de uma influência do latim spargo – do qual evoluiu espargir –, parece ela pouco provável, porque, para se verificar, teria de se ter feito sentir num meio erudito. Ora, a forma esparguete antes se afigura uma criação popular, alterada por aproximação a espargo, num processo enquadrável na etimologia popular1.

Por contraste, a forma brasileira é mais conservadora, por não fazer a referida epêntese. Poderá pensar-se que a fortíssima presença italiana no Brasil para tanto terá contribuído1, mas falta informação que possa confirmar esta conjetura.

 

1 A etimologia popular consiste na alteração da forma de uma palavra de modo a aproximá-la de outra, por se supor que existe entre elas uma relação semântica ou derivacional. É o fenómeno que ocorreu na evolução da palavra floresta, na Idade Média foresta, na qual se inseriu por analogia um l não etimológico, no pressuposto erróneo de haver uma relação com flor. Cf. "Floresta e a família de palavras flor".

2

Pergunta:

Eu sei que não cabe analisar uma frase dita em outros tempos com as estruturas do presente, mas o ex-presidente de Brasil, o populista Getúlio Vargas [1882-1954], antes de se suicidar, escreveu:

«A sanha dos meus deixo o legado de minha morte.»

Se o trecho fosse escrito atualmente, o "a" deveria levar crase?

Grato!

Resposta:

A frase original faz parte da versão manuscrita da chamada carta-testamento de Getúlio Vargas. Em diferentes edições, apresenta-se sempre a palavra à com acento gráfico, a marcar a contração da preposição a com o artigo definido a – ou seja, a assinalar crase, como se diz no Brasil:

«Deixo à sanha de meus inimigos, o legado de minha morte.»

Note-se, porém, que o presidente parece ter cometido um pequeno erro nessa célebre nota manuscrita, ao escrever a forma "á", com acento agudo, a qual corretamente deveria grafar-se "à", com acento grave, mesmo em 1954, ano da sua morte1. Pelo menos, assim sugere o exame do documento em causa, que abaixo se reproduz conforme imagem publicada nas páginas do sítio eletrónico Só História:

 

 

 

1 É possível que Getúlio Vargas, nascido em 1882, tenha escrito "á" por condicionamento de hábitos gráficos adquiridos durante a sua escolarização, anterior às reformas ortográficas do português ocorridas depois de 1911. Contudo, à data da morte do presidente brasileiro em 1954, vigorava no Brasil, e

Pergunta:

É muito comum no Brasil usarmos o termo «meia dúzia» com o sentido de «seis», principalmente em comunicações telefônicas e aéreas, para que em caso de algum ruído na comunicação, não se ouça três, no lugar de seis. Logo, «meia dúzia» facilita a compreensão de que falamos de 6, e não três.

Pois bem, uma pessoa grosseira me corrigiu, quando eu fornecia meu telemóvel, e citei um dos dígitos como «meia dúzia», com o intuito de facilitar a compreensão. A pessoa respondeu que «meia era para pés». A pessoa compreendeu exatamente o que eu quis dizer, pois após longos anos de troca entre Brasil e Portugal, muitos conhecem muito bem nossas expressões.

Eu não corrijo um americano, quando ele me diz que um artigo custa, por exemplo, 10K. Isso faz parte do dinamismo da comunicação, cada língua tem expressões ou gírias, que podem ser entendidas por outros, sem que isto cause constrangimento.

A pergunta é se  posso usar «meia dúzia», no lugar de seis, sem estar incorrendo num erro gravíssimo, que me leve à "guilhotina" (ironia) ?

Resposta:

Sabe-se que o emprego de «meia dúzia» ou simplesmente meia como sinónimo de seis é característico do português coloquial do Brasil (na comunicação telefónica), até porque já tem registo tanto em dicionários brasileiros como em dicionários elaborados em Portugal:

(1) «[meia é redução de «meia dúzia» e] empregado especialmente. no discurso falado para diferençar o som da palavra seis do da três, como, p.ex., na frase: o prefixo dois-meia-três (263) é dos telefones da zona central do Rio.» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1.ª edição brasileira, 2001)

(2) «meia3 [mɐ́jɐ]. numeral. (redução de meia dúzia). Brasileirismo. Designação coloquial para o número 6.» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001)

O que é dito no exemplo 2 é ainda facilmente confirmável em dicionários em linha produzidos e mantidos em Portugal como o dicionário de português da Infopédia e no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

Diga-se, no entanto, que meia não constitui uso do português de Portugal, país onde se distingue bem seis de três1. É também possível que vários falantes, provavelmente mais idosos, achem estranho que meia ocorra com o significado em apreço, situação que poderá ser ultrapassada com o recurso à palavra seis. Entrando já em juízos éticos, é claro que são sempre de reprov...

Pergunta:

Como se deve escrever: "lenhocelulósico"? "Lignocelulósico"? "Lenho-celulósico"? "Ligno-celulósico"?

Resposta:

As grafias corretas do adjetivo em questão são lignocelulósico e lenhocelulósico. Embora ambas as formas sejam aceitáveis, pode afirmar-se que a primeira é mais frequente e até, quanto à sua formação, mais coerente do que a segunda.

As duas formas adjetivais derivam dos nomes lignocelulose e de lenhocelulose, cuja diferença linguística reside no contraste entre o elemento ligno- do primeiro, de origem erudita, e o elemento lenho-, de origem popular. Trata-se, portanto, de um exemplo interessante de elementos morfológicos que significam o mesmo, mas que têm histórias divergentes, pois, partindo do latim lignum, i, «madeira (para queimar)», tomaram configurações diferentes na sua evolução. Ilustram assim o que aconteceu com palavras autónomas como adro e átrio, duplo resultado da palavra latina atrium  em português.

Como todos constituem termos técnicos, nota-se preferência pela forma que apresenta um elemento diretamente transmitido por uma língua clássica, neste caso, o latim – ligno.Com efeito, uma consulta de páginas da Internet através do Google Académico mostra que a palavra que encerra o elemento de origem erudita, lignocelulose,  é mais frequente do que aquela que contém a forma de origem popular, lenhocelulose.

Refira-se, por último, que lignocelulose (ou lenhocelulose) denomina a matéria que «[...] é composta principalmente por determinados hidratos de carbono como a celulose, que é um homopolímero que se forma pela união de moléculas de β-glucose através de ligações β-1,4-glico...

Pergunta:

Estou escrevendo um conteúdo científico e os revisores corrigiram minha escrita de «pessoas transgênero» para «pessoas transgêneros».

Para mim, a palavra transgênero nesse caso é invariável, pois se desmembrarmos a palavra em trans+gênero, obtemos o sentido de «troca de gênero». Ou seja, «pessoas (no plural) de gênero (no singular) trocado».

O argumento dos revisores é que existe mais de um gênero, portanto o correto para eles seria pessoas transgêneros (tudo no plural). Acredito que se o termo transgênero for utilizado isoladamente, como um substantivo, ele possa variar em número (ex: «os transgêneros da nossa comunidade»), porém quando utilizado como adjetivo, deveria ser invariável (ex: as pessoas transgênero da nossa comunidade).

Gostaria de saber se meu raciocínio está correto ou se estou equivocado.

Obrigado desde já!

Resposta:

A palavra transgénero está dicionarizada quer como adjetivo quer como substantivo. Como adjetivo, não parece haver consenso claro quanto à possibilidade da sua flexão no plural.

Os dicionários em linha elaborados em mantidos em Portugal – o da Infopédia e o Priberam – concordam quanto a classificar transgénero como adjetivo invariável: «pessoas/indivíduos trangénero». No entanto, em dicionários do mesmo tipo produzidos no Brasil, a informação lexicográfica associada sugere que o uso adjetival permite a flexão no plural: «pessoas/indivíduos trangêneros».

Quando empregada como substantivo, a palavra tem plural: «o/a transgénero», «os/as transgénero».

 

CfCisgénero e Transgénero