Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho dúvidas na redação da seguinte frase: «Como devemos nos proteger na utilização da Internet» ou «Como devemos-nos proteger na utilização da Internet.» Ou ambas estão erradas?

Obrigado!

Resposta:

As formas que nos apresenta estão incorretas em Portugal. As formas corretas são as seguintes:

1. Como nos devemos proteger na utilização da Internet.

2. Como devemos proteger-nos na utilização da Internet.

A possibilidade de o pronome pessoal átono (também chamado clítico nos estudos linguísticos) se associar quer ao verbo auxiliar (dever) quer ao verbo principal no infinitivo é um aspeto do funcionamento da língua que está há muito tempo descrito e que é aceite pela gramática normativa. Se um verbo auxiliar (como dever), nas formas finitas, for precedido de um advérbio («Não nos devemos proteger...») ou de uma conjunção («ele disse que nos devemos proteger....»), o pronome átono é atraído por esse advérbio ou por essa conjunção e precede o verbo finito («não nos devemos proteger...» e «que nos devemos proteger...»).

Obs.: Na Gramática do Português (GP), da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2288), observa-se isso mesmo, quando se fala de pronominalização em estruturas formadas por auxiliar + verbo infinitivo (perífrase verbal):

«Em estruturas completivas infinitivas nas quais a oração infinitiva é selecionada por certos verbos,  nas perífrases verbais em geral, um pronome átono complemento do verbo infinitivo pode cliticizar [="associar-se"], opcionalmente, ao verbo finito. Os pares de frases em (163) e (164) abaixo exemplificam esta opcionalidade: nos exemplos (a), o pronome cliticiza diretamente ao verbo infinitivo que o seleciona [...]; em contrapartida, nos exemplos (b), o pronome cliticiza ao verbo finito ...

Pergunta:

Gostaria se saber qual é o superlativo absoluto sintético do adjetivo esguia.

Resposta:

Diz-se e escreve-se esguiíssima (e esguiíssimo), tal como friíssima (ou friíssimo)* ou cheiíssima. O que se disse aplica-se a adjetivos como esguio/esguia, frio/fria ou cheio/cheia, que têm um i em sílaba tónica ("esguío", "frío"; em cheio o i faz parte de um ditongo em sílaba tónica).

Note-se, porém, que quando a sequência -io/-ia se encontra em sílabas átonas em adjetivos como necessário ou sério, não é preciso repetir o i no superlativo absoluto sintético, o que significa que se aceita necessaríssimo, a par de necessariíssimo, e seríssimo, com seriíssimo (ver Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 260).

* Existe uma forma culta: frigidíssima (ver Textos Relacionados).

Pergunta:

Gostaria de saber a vossa opinião sobre o processo de formação das palavra justapor. Julgo saber que justa é um prefixo latino, cujo sentido de «ao lado de» poderá não ser imediato para os falantes e por isso ser considerado um eruditismo. Mesmo assim, o elemento justa parece manter as características prototípicas de um prefixo. No vosso entender há fundamento para considerar a palavra justapor como formada por composição? E nesse caso, o elemento justa é visto como radical ou palavra?

Resposta:

A classificação de justa- como prefixo não é consensual. O gramático brasileiro Evanildo Bechara não inclui esta forma entre os prefixos, o que permite considerar que, em certa perspetiva, justapor não é um derivado prefixal, mas, sim, um composto morfológico. Contudo, tendo em conta que Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 87) e até o Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira) o inscrevem entre os prefixos, podemos classificar justapor como derivado prefixal (até porque os verbos compostos sao muito raros)*. Numa perspetiva ou noutra, justa- é sempre uma unidade não autónoma e, portanto, não se diz que é uma palavra.

Cf. Palavras que vêm do grego

Pergunta:

Devo dizer: «Preterido pelo consumismo» ou «preterido para o consumismo»?

Resposta:

A forma correta é «preterido pelo consumismo».

Diz-se e escreve-se «ser preterido por», no sentido de «rejeitado», introduzindo a preposição por a expressão nominal que se refere a coisa ou pessoa a favor da qual se pretere ou rejeita outra. Isto mesmo confirma o Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos de Francisco Fernandes, que atesta o uso de por entre as regências possíveis do adjetivo participial preterido: «O oficial antigo foi preterido por um afilhado do ministro.»

Pergunta:

Na frase «aqueles textos eram as coisas mais bonitas e perfeitas do mundo», podemos considerar que os dois adjetivos se encontram no mesmo grau (superlativo relativo de superioridade), ou temos de considerar o primeiro nesse grau e o segundo no grau normal?

Obrigada.

Resposta:

Ambos os adjetivos estão no superlativo relativo de superioridade. Se assim não fosse, não faria grande sentido ter a ocorrência «do mundo» associada a «as coisas perfeitas» numa frase simples, no exemplo a seguir (o ? indica que a frase tem problemas  de aceitabilidade):

(1) ? Eram as coisas perfeitas do mundo.

Em 1, «as coisas perfeitas»  não está no grau superlativo, e, portanto, não tem sentido nela ocorrer «do mundo», a não ser que, com esta expressão, queira fazer-se referência às coisas perfeitas que pertencem ao mundo. Mas o que (1) não diz é que se trata das coisas mais perfeitas que se salientam de outras coisa perfeitas existentes no mundo – não é, portanto, uma construção do superlativo relativo. O que se observa em (1) é que «do mundo» constitui apenas um modificador do nome, tal como «perfeitas».

Sendo assim, na frase em questão – «aqueles textos eram as coisas mais bonitas e perfeitas do mundo» –, «do mundo» completa claramente uma construção de superlativo, inferindo-se que «perfeitas» está coordenado com «bonitas» e que ambos os adjetivos fazem parte da mesma construção de superlativo, sendo modificados pelo advérbio mais.