Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe o verbo fantasmar? Pode dizer-se: «o mapa de África é fruto do fantasmar do colonizador»?

Obrigada por esclarecer o significado desta palavra.

Resposta:

A palavra existe no sentido de poder formar-se regularmente, receber um significado e até por já ter uso registado em dicionário.

Não sendo frequente, fantasmar é verbo possível, bem formado (derivado de fantasma) e facilmente interpretável – «tornar fantasma» ou «fazer fantasma», donde, neste caso, pelo contexto, se depreende que significa «imaginar», «ter a fantasia de».

O Dicionário Aulete, em versão eletrónica, confirma este uso, atestando-o com uma passagem de um autor português de começos do século XX: «O que aí vai, José!... Estás a fantasiar, homem. Ouve-me sossega. – Eu não sei se estou a fantasmar, se o que estou a fazer...» ( Sanches de Frias, Ercília , c. 4, p. 79, ed. 1908). É, aliás, curioso reparar que na frase citada fantasmar como que retoma fantasiar.

Note-se que fantasma, além de «aparição», pode significar «visão quimérica como a que oferece o sonho ou a imaginação exaltada» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) ou, ainda, no domínio da psicanálise, «situação imaginária em que o sujeito está presente e na qual se realiza um de seus desejos, mais ou menos disfarçado» (Dicionário Houaiss). Fantasmar será, portanto, também, «ter visões quiméricas» ou «imaginar ou fantasiar situações».

Pergunta:

Qual a grafia correta: "espírita" (com acento) ou "espirita" (sem acento)?

Resposta:

As duas grafias estão corretas, mas é mais corrente espírita.

O substantivo e adjetivo espírita é geralmente usado como uma palavra esdrúxula (proparoxítona) e, nesse caso, exibe acento agudo na sílaba --. Existe, no entanto, a variante espirita, que é palavra grave (paroxítona), de uso escasso.

A palavra significa de modo muito genérico «relativo ao espiritismo» ou «adepto do espiritismo».

Por espiritismo entende-se «[uma] doutrina baseada na crença na sobrevivência da alma, e na comunicação entre as pessoas e os espíritos de entes mortos, por intermédio de um médium, dotado de capacidades excepcionais» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, 2001; manteve-se a ortografia original). 

Esclareça-se que um médium é «segundo o espiritismo, pessoa capaz de se comunicar com os espíritos» (Dicionário Houaiss, 1.ª edição, de 2001).

Pergunta:

Diz-se «Dobrar uma folha ao meio» ou «Dobrar uma folha a meio»? A segunda formulação parece-me ser a correta, mas ouço quase sempre a primeira.

Muito obrigado!

Resposta:

A locução adverbial «ao meio» está correta, se pretende dizer que dobra uma folha ou a corta em duas partes iguais.

A referida locução está registada no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, que também classifica «ao meio de» como locução prepositiva; e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, aparece classificada como locução prepositiva, em subentrada a meio: «Ao meio de, tanto para um lado como para o outro; por metade, por igual.»

Dito isto, não se julgue que «a meio» e «a meio de» são locuções incorretas. Na verdade, não são, e pode-se até considerar que, entre estas e as referidas acima, se deteta certo contraste semântico:

1. Cortou a folha ao meio. [=cortou a folha em duas parte iguais]

2. Cortaram a luz a meio. [= p. ex. quando um espetáculo atingiu metade da duração prevista]

Pergunta:

Com vista à corroboração da conformidade de frases passivas que integrem o verbo mandar com a norma-padrão, proponho a análise sintática de um período de um romance coetâneo, As Viúvas de Dom Rufia, de Carlos de Campaniço: «Uma cadeira foi mandada buscar para a prima Joaquina, (...)».

Por norma, quase todos os verbos transitivos diretos permitem uma formulação ativa e passiva. Contudo, estou em crer que, a despeito da elaboração romanesca, estejamos, provavelmente, perante uma inapropriada identificação, ensaiada pelo narrador, do complemento direto, como se este correspondesse a «cadeira», no lugar de uma oração subordinada substantiva completiva não finita, conforme pode ser ilustrado por uma construção ativa da mesma frase «Ela mandou ir buscar uma cadeira», em que «ir buscar uma cadeira» desempenha a função sintática de complemento direto, podendo ser substituído por isso ou, eventualmente, permutada por uma conjunção subordinativa completiva, procedendo-se, então, às alterações necessárias. Não obstante, não tenho a certeza de que estas cogitações da minha parte sejam completamente consentâneas, pelo que peço o vosso parecer.

Obrigado.

Resposta:

Em português, o verbo mandar pode ocorrer na passiva quando o infinitivo que o completa tem o mesmo sujeito e é transitivo:

1. O Marquês de Pombal mandou construir a Baixa lisboeta.

2. A Baixa lisboeta foi mandada construir pelo Marquês de Pombal.

O caso ilustrado por 2 é possível, porque na ativa correspondente – como acontece no exemplo 1 – só ocorre um infinitivo cujo sujeito (não realizado nem identificado) está controlado pelo sujeito que mandar. No entanto, quando esse infinitivo tem sujeito realizado, a construção passiva levanta problemas de aceitabilidade:

3. O Marquês de Pombal mandou os arquitetos construir a Baixa.

4. ?Os arquitetos foram mandados construir a Baixa (pelo Marquês de Pombal).

Isto mesmo se observa na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1960):

«[...] [com os verbos causativos mandar, deixar, fazer] a passivização das construções de elevação do sujeito para o objeto resulta em frases muito marginais, se não mesmo agramaticais:

(iv) a. *Os filhos foram {mandados/deixados/feitos} ˍ [Or [-] sair do quarto] pelo pai. [...]»*

Contraponha-se, porém, um exemplo apresentado por João Peres e Telmo Móia em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa; Editoril Caminho, 1995, pág. 227), que o dão como gramatical: «Três oficiais da polícia tailandesa foram recentemente mandos cortar o bigode por um general.»

De qualquer modo, ...

Pergunta:

Na última década, na televisão e de forma oral, a expressão «no final de...» tem começado a ser utilizada com abundância. Já encontrei artigos contraditórios sobre o uso de final em vez de fim neste tipo de situações. Como referência temos os exemplos de Fim a encerrar livros e filmes. Porque referir «o Final do filme»? Se uma situação tem um final, não deve também ter seu correspondente inicial? «O final do filme» e «o inicial do filme»? Qual é o sentido de se utilizar final de duas formas distintas em comparação com o seu antónimo inicial? Esta expressão deve ter origem no português do Brasil. Há referências para a utilização da expressão «Final do dia» antes do ano 2000 em Portugal?

Obrigado.

Resposta:

1. «No final» e «no fim» são expressões sinónimas que estão corretas. Entre elas, existe um pequeno contraste semântico: enquanto «no fim» marca uma conclusão como evento, na expressão «no final» vinca-se mais a noção de «período final» ou «segmento final» de qualquer processo.

2. Quanto à possibilidade de «no inicial», esta não se verifica, porque simplesmente tal expressão não se fixou na língua. O que realmente existe tanto nos dicionários como na comunicação quotidiana é a expressão «no início», que alguns puristas não recomendavam, para aconselhar «no princípio» ou «no começo».

3. É duvidoso que «no final» tenha origem brasileira. Na verdade, não parece que seja assim, porque já se atesta a expressão, por exemplo, na escrita literária portuguesa do século XIX, nos textos de Júlio Dinis ou nos de Fialho de Almeida (neste caso, como expressão adverbial):

1. «Chegando ao limiar da porta, assistiu ainda ao final da cena que descrevemos» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, Porto, Livraria Lello, 1932, p.249, in dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s. v. final).

2. «O jornal Novidades, no dia 9, publicava, no final, e em normandos, o telegrama seguinte que é útil transcrever [...]» (Fialho de Almeida, Os Gatos, in Corpus do Português).

É também verdade que também se encontra «...