Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Para o habitante da região de Campos Gerais, grafa-se "geraizeiro", ou "geraiseiro"?

Obrigado.

Resposta:

Em relação a Campos Gerais, no estado brasileiro de Minas Gerais, o gentílico registado pelo Dicionário Houaiss é campos-geraiense, que, numa consulta da Internet, se pode verificar ter uso corrente. Também se deteta o emprego de "campos-geraisense" (derivado de Campos Gerais), mas, nos dicionários consultados (HouaissAulete e Michaelis, em versão digital), não se regista tal termo. Observe-se, no entanto, que, geralmente, a derivação de um gentílico tendo como base um topónimo terminado em -ais, com configuração de plural, tem em muitos casos a terminação -lense: Cascais > cascalense; Cristais (Minas Gerais) > cristalense. Mesmo assim, o facto de campos-geraiense estar dicionarizado permite supor que, apesar da sua formação discutível, o gentílico terá sido consagrado pelo uso.

* A forma "campos-geraizense" não é de recomendar porque o seu -z- não tem qualquer apoio na grafia do topónimo.

Pergunta:

A expressão «passadas duas horas, ela foi ver de nós» (no sentido de «foi à nossa procura») está correcta?

Resposta:

É uso legítimo, por analogia de «saber de»:

1 – Foi saber de nós.

2 – Foi ver de nós.

O Dicionário de Verbos e Regimes (Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, Edição da Livraria do Globo, 1947), de Francisco Fernandes, regista «ver de» na aceção de «concluir, deduzir»: «como se vê desta carta». Não é este o caso em questão, que se afigura como um emprego analógico de «saber de alguém/alguma coisa», na aceção de «saber onde se encontra alguém/alguma coisa».

Pergunta:

Gostaria de saber a subclasse do nome grupo. Tratando-se de um conjunto indiferenciado, é, na minha opinião, um nome comum. Contudo, algumas pessoas consideram-no um nome comum coletivo.

Obrigada.

Resposta:

Não é descabido classificar grupo como nome coletivo, apesar de a sua aplicação referencial ser suscetível de ser pouco ou nada diferenciada.

O substantivo grupo é classificado como substantivo coletivo pelo Dicionário Houaiss. A palavra é também assim classificada noutras fontes, a saber:

– Fernanda Carrilho, Dicionário de Nomes Coletivos (Lisboa, Publicações Europa-América, 2006): «pessoas ou coisas que constituem um todo»;

– Luiz Autuori Oswaldo Proença Gomes, Nos Garimpos da Linguagem, Livraria São José, 1959, pág. 142: «grupo – conjunto de objetos, de pessoas.»

Noutra perspetiva, também João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 1995, págs. 476/477), se referem a grupo, integrando a palavra na discussão da concordância com estruturas de quantificação complexa (mantenho a ortografia usada na fonte consultada):

«[...] [F]ormas como grupo e conjunto [...] funcionam de modo subsidiário na definição de entidades grupais. Trata-se de expressões que por si só não referem objectos, mas que, em combinação com nomes – como em grupo de estudantes ou conjunto de quadros – permitem referir colecções de objectos, sem as quantificarem. [...] [D]esigná-las-emos nomes de referência dependente

Esta passagem, não declarando que grupo é um nome (ou substantivo) coletivo, deixa, pelo menos, entender que o vocábulo se aplica a «coleções de objetos» e, sendo assim, pode ser visto como coletivo.

Pergunta:

Agradecendo uma vez mais o vosso incansável e meritório trabalho, pergunto se se deve escrever «assestar a luz na cara» ou «assestar a luz para a cara». Isto porque o verbo assestar pode significar apontar (apontar para...), mas a primeira expressão ouve-se com mais frequência. É um erro? Muito obrigado.

Resposta:

A regência de assestar – verbo transitivo direto e indireto, isto é, usado com complemento direto e complemento indireto ou oblíquo – pode ser construída com as duas preposições em questão e mesmo com outras:

a) «assestar alguma coisa para...»: «Os olhos, que à força de se assestarem para o céu, só cansados se podem baixar à terra» (Aquilino Ribeiro, Por Obra e Graça, 1939, citado pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – ACL);

b) «assestar em...:»: «Assestar a calúnia seus tiros contra alguém, ou em alguém» (dicionário de Morais, citado por Dicionário de Verbos e Regimes, de Francisco Fernandes);

c) «assestar alguma coisa contra...»: «Mandou assestar a artilharia contra as três companhias formadas em frente do forte» (Camilo Castelo Branco, Luta de Gigantes, citado pelo dicionário da ACL);

d) «assestar alguma coisa a...»: «Assesta o óculo de longa mira às brumas do horizonte» (Camilo Castelo Branco, Boémia do Espírito, citado pelo dicionário da ACL).

O verbo assestar pode ainda ser usado apenas como verbo transitivo direto: «assestar a luneta» (Francisco Fernandes, Dicionário de Verbos e Regimes).

Pergunta:

[Transcrevo uma frase]  de uma página do sítio Jogos da Santa Casa da Misericórdia:

«Sem si não seria possível. estamos de parabéns!»

Não me soa bem o uso daquele «SEM SI..»

Eu nunca nunca escreveria isso. Independentemente da correcção gramatical, é escrita pouco elegante. Sei que o pronome não se usa no Brasil nesta acepção.

O Ciberdúvidas tem alguma coisa sobre isso?

Obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista exclusivamente gramatical, a sequência «sem si» está correta no português de Portugal.

Trata-se do uso preposicionado do pronome pessoal correspondente ao tratamento formal ou distanciado do interlocutor, como se ilustra a seguir:

1 – Ernesto, sem si, isto não era possível.

Historicamente e ainda hoje, é uma forma reflexa de 3.ª pessoa que se usa com preposições, tal como acontece com as formas pronominais mim e ti:

«sem mim»
«sem ti»
«sem si»

A série continua nas restantes pessoas gramaticais, mas sem se distinguirem das formas usadas como sujeito:

«sem nós»
«sem vós»
«sem ele(s)/ sem ela(s)»

Apesar de, nas fontes consultadas para esta resposta, não se encontrarem comentários da tradição normativa que sejam desfavoráveis ao emprego de «sem si», pode admitir-se que haja quem considere que a aliteração não intencional, destituída de função estilística, do s – «sem si – é de evitar. Nesta perspetiva, existem construções em alternativa, cuja seleção se fará em função do contexto:

sem a sua participação, não seria possível
sem o seu interesse, não seria possível
sem contar consigo, não seria possível

No Ciberdúvidas, não se encontram respostas que foquem a expressão «sem si». Contudo, uma resposta de F. V. Peixoto da Fonseca atesta «sem ti», que, como acima se apontou, permite legitimar «sem si» do ponto de vista gramatical.