Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma mais correta: «raça garrana», ou «raça garrano»?

Grata pela atenção.

Resposta:

A palavra garrano está dicionarizada como substantivo do género masculino, nas aceções de «cavalo robusto, de marca pequena» e «velhaco, patife» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Também se regista garrana, como substantivo do género feminino, com o significado de «égua robusta, pequena» (idem). No caso de «raça garrana», a palavra ocorre como adjetivo, emprego que não está previsto pelos dicionários consultados; contudo, é legítimo que assim aconteça, porque não é infrequente a conversão de substantivos em adjetivos, como mostra o exemplo de alazão, «que ou o que tem o pêlo cor de canela, com uma tonalidade simultaneamente castanha e avermelhada» (Dicionário Houaiss), que, em referência a cavalos, aparece nas duas situações: «o alazão» (substantivo); «o cavalo alazão» (adjetivo). Esta possibilidade é igualmente ilustrada por um título jornalístico: "Ajudas garantem sobrevivência da raça garrana até 2013". Pode, portanto, dizer-se «raça garrana», operando a necessária concordância de garrano com raça.

Pergunta:

Fiquei surpreendida por não encontrar no dicionário a palavra amola-tesouras. Neste caso, deve ser escrita sem hífen, tratando-se, não de uma palavra, mas de uma expressão?

Resposta:

A palavra amola-tesouras é correta e escreve-se com hífen.

É de facto surpreendente não encontrar o vocábulo amola-tesouras registado nos dicionários consultados – a saber: o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado; o dicionário da Porto Editora; o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; e o Dicionário Houaiss (edição brasileira de 2001). Saliente-se, porém, que algumas destas fontes acolhem amolador na aceção de «homem que, por ofício, geralmente ambulante, afia no rebolo [pequena mó que amola objetos cortantes] navalhas, tesouras, facas e instrumentos semelhantes» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Mas a falta de registo dicionarístico de amola-tesouras, que tem o mesmo significado que amolador, não quer dizer que se trate de palavra incorreta; pelo contrário, estamos a falar de um vocábulo legítimo, conhecido por muitos portugueses, que ainda chamam assim os indivíduos que têm esta atividade.

Curiosamente, é preciso consultar o Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral, para encontrar o registo de amolador, a par de uma variante mais extensa de amola-tesouras, com o seguinte comentário: «Amolador e amola-tesouras e navalhas [são] um dos casos de diversidade de nomeação de profissões [...].» Note-se que amola-tesouras se deve grafar com hífen, à semelhança de outros compostos de verbo e substantivo (guarda-redes, porta-luvas). No caso da expressão registada por Vasco Botelho...

Pergunta:

Tenho notado, sobretudo em linguagem publicitária, a utilização do termo "costumizar" como sinónimo de personalizar. O dicionário Priberam disponível em linha dicionariza a palavra, atribuindo-lhe esse significado (não encontrei tal palavra no de José Pedro Machado, dicionário que habitualmente utilizo). Pergunto: será correcto o uso de um estrangeirismo manifesto – que para mais se confunde com o verbo costumar – quando existe em português o "velho" personalizar?

Obrigada.

Resposta:

À volta do verbo "costumizar" – também escrito "customizar" –, com o significado de «adaptar às preferências de um cliente ou utilizador», as respostas aqui disponíveis (ver Textos Relacionados na barra ao lado) não lhe são favoráveis, nelas se considerando que personalizar é forma mais correta por estar mais de acordo com a morfologia e a semântica lexical do português1. Não obstante, importa tecer algumas considerações sobre "costumizar" e "customizar":

– A versão em linha do Vocabulário Ortográfico da Porto Editora e o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa registam apenas "customizar", não tendo este verbo entrada noutros vocabulários ortográficos recentes. "Costumizar" não figura em nenhum vocabulário ortográfico.

– O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora consigna somente "customizar", enquanto o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista as duas formas: "customizar", como aportuguesamento do inglês customize; e "costumizar", palavra formada por derivação sufixal (costume + izar).

– A forma "customizar" levanta o problema de integrar sem aportuguesamento morfológico o radical inglês custom-, o qual coincide com custom, «costume, hábito» e está na base do substantivo customer, «cliente, freguês». Sendo custom cognato de costume, espera-se que um aportuguesamento adequado apresente o radical do substantivo português (costum-), e não o do substantivo inglês (custom-...

Pergunta:

Gostaria de saber a origem da expressão «ser de trás da orelha» (ou «da ponta da orelha») que em linguagem popular significa «ser excelente». Exemplo: «Este vinho é de trás da orelha.»

Resposta:

Nas fontes de que dispomos, não achamos informação que explique cabalmente a origem da expressão em apreço. No entanto, algumas obras acolhem esta e outra expressões que, no seu conjunto, parecem definir algumas pistas para a compreensão da sua génese.

Assim, no Dicionário Prático de Locuções e Expressões Correntes (Papiro Editores, 2007, pág. 412), de Emanuel de Moura Correia e Persília de Melim Teixeira, regista-se «de trás da orelha», com o significado de «muito bom, magnífico», e outras expressões sinónimas que também incluem a palavra orelha: «da ponta da orelha – coisa que agrada, que é boa, bonita ou gostosa»; «do brinco da orelha – ótimo».

É de realçar que todas estas expressões são ainda sinónimas de uma outra que os Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1990), de António Nogueira Santos, registam: «Ser daqui (popular): ser excelente (acompanhando-se a expressão do gesto de puxar a ponta da orelha com dois dedos).»

Arrisco-me a sugerir que «por trás da orelha» se relacione também com este gesto, talvez na perspetiva da posição do polegar (ou outro dedo) que se coloque atrás da ponta da orelha para a apertar de encontro ao dedo que estiver à frente. Mas também não excluímos que a expressão tenha sido motivada por outras expressões que envolvem a parte de trás da orelha – «fazer o ninho atrás da orelha», «estar com a pulga atrás da orelha», que, no entanto, subentendem uma perspetiva negativa, e não positiva.

Pergunta:

Li no jornal Público a seguinte frase:

«Nas últimas duas semanas, 32 palestinianos e sete israelitas morreram na mais recente onda de violência em Jerusalém e na Cisjordânia – a mais grave dos últimos anos e que muitos consideram ser o início de uma terceira intifada (revolta), depois das iniciadas em 1987 e em 2000.»

A minha dúvida é a seguinte: é aceitável coordenar uma oração relativa com outra estrutura que não uma oração relativa? Ou seja, para escrever «e que» não temos de ter antes um que? Creio que a frase deveria ser como a apresento de seguida, mas queria ter a certeza:

«Nas últimas duas semanas, 32 palestinianos e sete israelitas morreram na mais recente onda de violência em Jerusalém e na Cisjordânia – que é a mais grave dos últimos anos e que muitos consideram ser o início de uma terceira intifada (revolta), depois das iniciadas em 1987 e em 2000.»

Muito obrigado.

Resposta:

Gramaticalmente, ambas as frases estão corretas. A segunda pode ser mais explícita do ponto de vista sintático, mas a primeira aproveita a possibilidade de coordenar grupos sintáticos com a mesma função sintática – no caso, «a mais grave dos últimos anos» (que, afinal, é uma construção elíptica, porque omite certos elementos de uma oração que se subentendem: «a que é mais grave») e «que muitos consideram ser o início de uma terceira intifada (revolta)» são expressões de natureza adjetival, com a função de modificador apositivo.

É de assinalar que, na coordenação de grupos sintáticos, não é obrigatório que estes tenham o mesmo tipo de estrutura. Isto diz a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 1768)[1]:

«As estruturas de coordenação mais típicas envolvem a coordenação de palavras ou de constituintes da mesma classe [...].

Nestes casos, existe paralelismo estrutural[2] entre os constituintes coordenados. O paralelismo estrutural, ainda que muito frequente, não é, contudo, um requisito absoluto das estruturas coordenadas. Assim, a coordenação de constituintes de classes sintagmáticas distintas é possível, como se ilustra em (21):

(21) a. Um molho [SA muito picante] e [SP com uma cor escura] acompanhava a carne.

       b. [SAdv Aqui] e [SP no rio Guadiana] apareceram cianobactérias que causaram a morte de muitos peixes.

       c. [SAdv Hoje] ou [Or sempre que precisares de algum livro], deves ir à biblioteca.

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