Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Certa vez, numa conversa com um amigo meu, eu disse «ele não se enxerga», com o sentido de «ele não tem noção do que faz/diz». Ao que o meu amigo respondeu: «Estás a falar segundo o novo Acordo Ortográfico» – já que é um lugar-comum dizer-se que escrever no novo Acordo Ortográfico é escrever como os brasileiros... De facto, reconheço esta expressão mais como brasileira, mas pergunto: é errado em Portugal dizer-se ou escrever-se «ele/ela não se enxerga» com o sentido de «ele/ela não tem noção do que faz/diz» ou «não vê o defeito que tem em si mesmo/a»? É que a expressão «ele não se enxerga» parece-me mais expressiva! Também já ouvi a expressão «ele não se manca».

Desde já agradeço a vossa resposta.

Resposta:

Para começar, algumas palavras sobre uma eventual identificação entre o Acordo Ortográfico e «falar/escrever à brasileira». Se a pergunta incide sobre o uso de duas expressões, estando, portanto, relacionada com questões de léxico (frases feitas, por exemplo) e discurso, não se pode dizer que o problema levantado se deva à nova norma ortográfica, porque esta encontra o seu campo de aplicação numa vertente linguística muito diversa, a escrita. Por outras palavras, a introdução em Portugal de modismos vocabulares e fraseológicos do Brasil não decorre diretamente da ortografia (já a influência cultural de um país sobre o outro e os sinais desse processo constituem outro assunto). Além disso, aplicar o Acordo Ortográfico em Portugal não é o mesmo que escrever (nem falar) à brasileira, e a prova disso está em os portugueses continuarem a escrever facto – com c escrito, para indicar que a consoante correspondente é efetivamente pronunciada –, ou passarem a escrever receção, quando no Brasil se grafa recepção.1

1 – O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (edições brasileiras de 2001 e 2009), elaborado no Brasil, consigna o uso pronominal de enxergar, atribuindo-lhe, sem outra indicação,  o significado de «cair em si, perceber-se a si mesmo. Ex.: aquele menino não se enxerga!» Contudo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, em subentrada incluída no verbete correspondente a enxergar, regista-se a expressão «não se enxergar», descrita como «brasileirismo familiar» que significa «não reconhecer as próprias incapacidades». Uma consulta do Corpus do Português permite identificar 20 ocorrências da sequência «não se enx...

Pergunta:

Não posso concordar [quando se diz] que é aceitável dizer «eu disse para fazeres isso». Correcto é (e sempre foi assim): «Eu disse que fizesses isso.» E porquê? Porque eu disse: «Faz isso!» Logo, fica: «eu disse que fizesses isso»; mas nunca «eu disse para fazeres isso», pois tal não faria sentido nenhum. Da mesma maneira que se diria: «eu ordenei que fizesses isso», e nunca «eu ordenei para fazeres isso», nem «eu mandei para fazeres isso», mas, sim, «eu mandei que fizesses isso»; pois a ordem, ou o mandado, foi: «Faz isso.» E o mesmo se aplica ao verbo pedir: Eu pedi: «Faz isso.» «Eu pedi que fizesses isso»; e não: «Eu pedi para fazeres isso».

O uso de para seria correto neste caso: «Eu disse aquilo, para te animar»; «eu pedi aquilo, para te animar». Esse erro parece-me, mais, ser uma corrupção pelo inglês, em que se costuma dizer: «I told/ask you to do that», que, vertido literalmente para português, seria, efectivamente: «Eu disse-vos/pedi-vos para fazerdes isso»; mas cuja tradução em português correcto é: «Eu disse-vos/pedi-vos que fizésseis isso» («eu disse-vos/pedi-vos: Fazei isso»). Isto, sim, faz pleno sentido. Erros devem ser condenados prontamente; e não devem ser tolerados, só porque são muitos os que os cometem. E os doutores têm a obrigação de fazer isso mesmo. Quando prevaricam, o erro espalha-se velozmente.

Resposta:

As fontes de que dispomos não confirmam que a construção em causa – «dizer para» + infinitivo – seja resultado de uma deturpação provocada pela influência da língua inglesa. Com efeito, a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 1929) inclui o verbo dizer entre os verbos diretivos («designam atos de fala que representam ordens ou pedidos») que «selecionam orações infinitivas introduzidas pela preposição para, entre os quais dizer, implorar, insistir e pedir» (exemplos da mesma fonte: «a professora disse para (tu) não copiares»; «eu insisti para os jardineiros cortarem essa árvore»; «o prisioneiro implorou/pediu para os guardas o libertarem»).

Observe-se que a gramática referida tem um propósito descritivo e, portanto, poderá pensar-se que os exemplos que apresenta sejam o retrato de um uso que a norma tradicional não aceita. Mas não é bem isto que se verifica, porque mesmo os gramáticos normativos aceitam em parte ou totalmente a associação da preposição para ao verbo dizer (a discussão abrange também «pedir para...» + infinitivo). Assim:

1. Napoleão Mendes de Almeida (NMA), que, no seu Dicionário de Questões Vernáculas (artigo "Pedir que..."; foi consultada uma impressão de 2001, mas a obra é muito anterior), condenava o uso de dizer e pedir com para (a introduzir oração de infinitivo) e «para que» (no começo de oração finita), concedia legitimidade, pelo menos, a «pedir para» e «dizer para» + infinitivo, que os clássicos literários abonavam (exemplos do autor em referência): (i) «Um cavaleiro... pede para falar com o conde.» (Herculano) (ii) «Padre Antônio... pediu para ficar só comigo.» (Camilo) (iii) «Minha mãe ficou perple...

Pergunta:

Gostaria de saber se em Portugal também se chama alguém bonito de gato ou gata e qual é a origem dessa forma de expressão.

Resposta:

O uso de gato e gata no sentido que refere é conhecido e tem difusão, mas ainda é considerado como típico do português do Brasil. Não temos fontes que esclareçam como surgiu essa aceção da palavra, mas supomos que tenha sido por metáfora, equiparando a sedução de uma pessoa ao comportamento voluptuoso e muitas vezes selvagem dos felinos.

Pergunta:

Num livro que estou a rever, a autora escreve «clariaudiente» e precisa que o termo significa o oposto de «clarividente». [...] Este termo existe mesmo?

Muito obrigado. E parabéns pelo vosso trabalho: é uma ajuda preciosa!

Resposta:

O termo clariaudiente é possível e ocorre mesmo ao lado de clarividente, por exemplo, no Dicionário Houaiss, não como entrada, mas como forma que faz parte do artigo dedicado ao elemento de composição clari-:

«[clar-] antepositivo, do latim clarus, a, um, "claro"; observam Ernout e Meillet: "Aparentado a clamo e calo, clarus deve ter-se aplicado à voz e aos sons, clara vox etc. (cf. declaro; clarisonus, tradução do grego ligúphthoggos); estendeu-se depois às sensações visuais, clara lux, clarum caelum, 'claro, brilhante', depois às coisas do espírito, clara consilìi, exempla etc., e mesmo aos indivíduos e às coisas: "ilustre, brilhante, glorioso" (por oposição a obscurus), donde a fórmula vir clarissimus; ocorre em vocábulos já originariamente latinos, já formados à sua feição, atestados desde as origens do idioma: [...] clariaudição, clariaudiência, clariaudiente, [...] clarividência, clarividente [...].»

Note-se que neste verbete ocorrem, a par de clariaudiente, outros substantivos que encerram a raiz aud-, alusiva à audição – clariaudição e clariaudiência.

Pergunta:

Como se escreve o topónimo Mira-Sintra (com, ou sem, hífen)?

Resposta:

Trata-se de um caso cuja grafia ainda não estabilizou, existindo, portanto, pelo menos, duas maneiras de o escrever. Será necessário que a administração fixe a forma do topónimo. De qualquer modo, dois brevíssimos comentários:

1 – A Base XV, 2, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, determina que se empregue «[...] o hífen nos topónimos/topônimos compostos iniciados pelos adjetivos grã, grão ou por forma verbal ou cujos elementos estejam ligados por artigo: Grã-Bretanha, Grão-Pará; Abre-Campo; Passa-Quatro, Quebra-Costas, Quebra-Dentes, Traga-Mouros, Trinca-Fortes; Albergaria-a-Velha, Baía de Todos-os-Santos, Entre-os-Rios, Montemor-o-Novo, Trás-os-Montes» (sublinhados meus). Ora, tendo em conta que, na toponímia e no vocabulário comum, a forma mira tem origem na 3.ª pessoa do singular do verbo mirar («fitar, olhar»), dir-se-ia que a forma mais correta é Mira-Sintra. Contudo, a grafia de outros topónimos mostra que o elemento mira- ocorre aglutinado ao segundo elemento; exemplos: os tradicionais Miragaia e Miramar, bem como o mais recente Miratejo. Não parece ser este o caso de Mira-Sintra – ou Mira Sintra –, que não se encontra atestado como "Mirassintra".

2 – Verifica-se que a