Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Posso dizer «a qualquer altura do dia», ou é mais correto dizer «em qualquer altura do dia»?

Resposta:

Pode dizer/escrever das duas maneiras:

1 – «a qualquer altura do dia»

Neste caso, pressupõem-se construções como «ao meio-dia», «à tarde», «à noite», «à meia-noite», nas quais ocorre a preposição a.

2 – «em qualquer altura do dia»

Em 2, a construção tem valor mais genérico, tendo em conta expressões em que ocorre a preposição em: «na altura», «nessa altura».

Observe-se que alguns dicionários consultados (um geral e dois mais especializados) não chegam a consenso quanto à preposição a usar com certas expressões em que entra altura. Por exemplo, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista a expressão «em qualquer altura», sinónima de «em qualquer momento», «em qualquer ocasião», expressões que também incluem a referida preposição; no entanto, também aí se escreve «a dada altura», como sinónimo de «a alturas tantas».

O dicionário de expressões idiomáticas de António Nogueira Santos (Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1990) regista «a dada altura» e «a certa altura»; mas o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático (Lello Editores, 1999), de Énio Ramalho, fixa cada uma destas expressões com preposição diferente: «a certa altura» e «em dada altura».

Parece, portanto, legítimo aceitar as duas preposições.

Pergunta:

Tracking poll é o nome inglês que a comunicação social caseira chama àquelas sondagens "à pressão" também denominadas low cost. Será que não há tradução em português?

Resposta:

Tracking poll tem um equivalente em português, que tem ganho frequência: «sondagem diária», conforme o uso que fazem alguns órgãos da comunicação social.

Observe-se, porém, que «sondagem diária» pode não ser uma tradução muito satisfatória, porque lhe escapa a alusão feita pela expressão inglesa à monitorização ou ao acompanhamento (tracking) da evolução da opinião ou das tendências de voto de um universo de eleitores ao longo de um determinado intervalo temporal. Não admira, pois, que tracking poll encontre outras soluções, como é o caso de «sondagem com continuidade», que figura numa página do jornal português Público. Na comunicação social do Brasil, ocorrem, além de «sondagem diária», também formas como «rastreamento público contínuo» e «pesquisa de rastreamento». Trata-se, portanto, de um termo inglês que ainda não achou equivalente estável em português; mesmo a solução apresentada inicialmente – «sondagem diária» –, apesar de revelar-se uma boa opção pelo seu caráter sintético, não é totalmente fiel ao significado original.*

Refira-se que, em espanhol – convém sempre saber como as línguas irmãs do português lidam com os empréstimos do inglês –, existem, pelo menos, dois usos: «sondeo diario», homólogo da nossa «sondagem diária»; e «encuesta de seguimiento», expressão que se afigura ambígua, porque suscetível de aparecer igualmente em lugar de

Pergunta:

Num comício, o secretário-geral [Jerónimo de Sousa] do Partido Comunista Português empregou o verbo "salamizar" [N.E. – Vide aqui a frase:«O Governo decidiu salamizar a CP»].

Pergunto: esta palavra existe?

Resposta:

A palavra "salamizar" não está dicionarizada. É possível que seja uma criação linguística surgida no contexto da campanha para as eleições legislativas em Portugal, em 4 de outubro em 2015 .

De acordo com o relato feito pelo semanário português Expresso, o verbo terá surgido nas seguintes circunstâncias:

«Jerónimo [de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português] promete voltar a tentar “repor os direitos” perdidos dos trabalhadores dos comboios já na próxima legislatura. E aponta o dedo aos responsáveis: o governo, que desmembrou a CP e a retalhou às peças. Ou, melhor, “decidiu salamizá-la”. Cortou-a em fatias? É isso. A companhia ficou em tiras. Jerónimo, mais uma vez, ganhou na arte do improviso.»

A citação é bastante clara quanto à formação e à semântica do verbo.* Quanto ao neologismo – se o é de facto (ver mais abaixo nota) –, a sua criação tem o intuito de dar maior expressividade ao discurso. O meio linguístico mobilizado neste caso é o da derivação de palavras, lançando mão da grande produtividade do sufixo -izar, o qual permite formar um sem-número de verbos denominais e deadjetivais (derivados de substantivos e adjetivos): arborizar («plantar árvores num terreno»); oficializar («tornar oficial»).

Nota (1/10/2015): Alterei a resposta, na se...

Pergunta:

Num documento de 1728, do Mosteiro de Cabeceiras de Basto, referente a obras efectuadas, lê-se o seguinte:

«Venceram-se as dificuldades que se representavam de se achar água em parte conveniente para o claustro e limpeza da cozinha com duas graves fontes, que com custo, trabalho e perigo se abriram, uma em a cerca da recochina em tanta abundância que recolhida a cerca da horta onde fica já encanada, se pode levar para a sacristia deixando alguma para regar as hortas.»

Qual o significado de “recochina”?

Muito obrigado pela vossa atenção!

Resposta:

É difícil reunir elementos que esclareçam cabalmente a origem e o significado de "recochina". Mesmo assim, encontram-se algumas pistas:

– Em Portugal continental, identificam-se alguns topónimos com a forma Recochina, dispersos atualmente entre o Alentejo e o vale do Douro, conforme evidencia uma consulta do visualizador de informação geográfica do Centro de Informação Geoespacial do Exército IgeoE-SIG. Além disso, uma tese de doutoramento – Toponímia moçárabe no antigo condado de Coimbra, datada de 2005 e da autoria de Maria Luísa Azevedo – regista não só a referida forma toponímica, mas também uma variante, Reconchina (p. 437).

– No léxico comum, documenta-se o uso regional de recochino e recochina (pronunciados com e átono aberto: "rècochino/a") num estudo elaborado nos anos 20 do século passado e dedicado ao falar de Ervedosa do Douro (Revista Lusitana, vol. XXVII, p. 128). O significado que nesta fonte se atribui à palavra é «muito porco», sobretudo em referências às crianças. Recochino seria a aglutinação da sequência «reco cochino» (reco, «porco» + cochino, «porco», «sujo«), com perda de uma das sílaba com a forma co (haplologia).

A conclusão a retirar destas informações só pode ser...

Pergunta:

[Nos comentários a um artigo num blogue], estamos a discutir qual a forma correta «leite em pó desnatado», ou «leite desnatado em pó»? «Leite em pó» é um substantivo, e magro, o adjetivo que o classifica? Qual é a forma correta? Ou serão as duas corretas?

Resposta:

Não parece haver uma resposta inequívoca a esta pergunta, porque é difícil:

a) definir uma hierarquia semântica entre os classificadores (o particípio adjetival desnatado e o sintagma preposicional «em pó»);

b) identificar qual é o que está mais fortemente associado ao substantivo, de tal modo, que se possa afirmar que uma das sequências (substantivo + adjetivo – «leite desnatado» – ou adjetivo + sintagma preposicional – «leite em pó») forma uma unidade lexical (há autores que chamam a este tipo associações «combinatórias fixas» – cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, p. XXI –, outros, «unidades multilexicais» – cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1069).

Casos como este, em que não é possível definir qual é o constituinte proeminente, estão descritos na Gramática do Português (p. 1462):

«À falta de proeminência de uma subclasse [de classificadores] em relação a outra, aspetos pragmáticos, como o foco, determinam a ordem: "plantas tropicais de interior", com foco em "de interior", ou "plantas de interior tropicais" (cf. [...] "arquitetura italiana renascentista", com foco no estilo arquitetónico, e "arquitetura renascentista italiana", com foco na especificidade geográfica e cultural).»

Em relação à realidade que se pretende nomear, parece, portanto, estarem disponíveis duas expressões que designam dois tipos de leite disponíveis no mercado:

(1) leite desnatado

(2) leite em pó

Os classificadores podem combinar-se de duas maneiras, porque, do ponto de vista linguístico, não é possível definir entre eles uma relação de proeminência: