Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a fórmula mais correta:

«fruir do dom do sol e do dom do mar», ou «fruir o dom do sol e o dom do mar»?

Grato desde já pela atenção.

Resposta:

O verbo fruir pode ser transitivo direto – ou seja, tem um complemento direto («fruir o sol») e, por isso, emprega-se sem regência – ou transitivo indireto – isto é, tem regência, e, portanto, pode ocorrer com um complemento preposicionado («fruir do sol»). Ambos os usos estão corretos e são semanticamente equivalentes. Refira-se que este comportamento sintático está descrito em obras de referência como o Dicionário Houaiss e o Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (2007, Texto Editora), de Malaca Casteleiro.

Pergunta:

Antes de tudo, meus parabéns ao website pelas excelentes contribuições no que diz respeito aos usos da língua portuguesa. Sei que já houve publicações, no Ciberdúvidas, do assunto de que trataremos, mas, dado o uso cada vez mais amplo da expressão em pauta, gostaria de relançar a questão.

Em vários meios, sobretudo na imprensa e também em textos de ONG, vem sendo empregada, há um significativo tempo, a expressão «crise humanitária» (p.ex.: «Agrava-se a crise humanitária de refugiados na Europa»), com a acepção de uma situação de grande emergência, na qual se acha em perigo a vida de grande número de pessoas, de modo que se torna necessária a mobilização, por vezes extraordinária, de recursos de ajuda. Dicionários e os usos originais registrados do adjetivo humanitário, por sua vez, se referem a ações positivas em relação ao homem, em seu favor (o Houaiss, p.ex., numa de suas acepções para esse adjetivo, traz: «que ou aquele que se dedica a promover o bem-estar do homem e o avanço das reformas sociais; filantropo»). O Dicionário Caldas Aulete on-line, na acepção 2 da entrada confim, traz, por lapso ou não, a seguinte citação de um website como exemplo de uso do verbete, sendo que aí aparece a expressão de que estamos tratando: «As minorias étnicas birmanesas deslocadas no confim com a Tailândia estão vivendo uma grave crise humanitária.» (portasabertas.org.br, 'Direitos humanos violados e expulsão das minorias étnicas', 20/12/2004).

Considerando a semântica original de humanitário, muitos têm desaconselhado ou condenado a expressão «crise humanitária», visto não se tratar de crise em prol do ser humano. Por outro lado, o uso e o reuso têm difundido largamente a expressão, como se pode constar numa visita a jornais imp...

Resposta:

Sobre o uso de humanitário, e em acréscimo ao que já aqui (muito) se escreveu (ver Textos Relacionados), temos de distinguir duas perspetivas:

1. Do ponto de vista descritivo, é nosso dever registar que o adjetivo tem estado sujeito a um processo de alteração semântica, que reflete a própria deriva semântica de humanitarian em inglês, ou de humanitario, em espanhol. Disso mesmo damos conta no artigo "Porque é incorreta a expressão 'crise humanitária". É possível que, dentro de algum tempo, seja a vez de o português normativo aceitar tal (dis)torção da semântica original do adjetivo.

2. Contudo, no plano dos juízos normativos, a posição do Ciberdúvidas vai no sentido de defender a semântica original da palavra e, portanto, rejeitar expressões como «tragédia humanitária», «crise humanitária» e «caos humanitário». Assim, recomendamos que, na língua culta, não se empreguem tais expressões, considerando nós que «crise humana» ou «tragédia» humana são associações adequadas e corretas.

Não obstante a posição tomada pelo Ciberdúvidas, sabemos que, quando se fala de norma-padrão, se deve também ter em atenção o uso e a pressão social associada (por exemplo, o latim evoluiu para o português, numa época em que as condições históricas favoreceram mais a imposição do uso concreto do que a sua vigilância). Se o uso do adjetivo em apreço se generalizar em contextos como os mencionados, contrariando o juízo que nos leva a condená-lo, será mais um caso, entre muitos na nossa língua, do uso sobrelevar o sentido original da palavra, como são os casos de despoletar ou

Pergunta:

Como posso abreviar a palavra diáconos? É só colocar um s no final da abreviatura diác.?...

Sobre a resposta para esta questão: posso aplicá-la a qualquer abreviatura?

Grata.

Resposta:

Tendo em conta casos como drs. (= doutores) e srs. (= senhores) – cf. drs. no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (ver também blogue O Linguagista), deve escrever-se diács.

Junta-se geralmente s a uma abreviatura, no caso de a palavra abreviada, que tem forma singular, estar no plural (exemplo: Exa./ExcelênciaExas./Excelências). No entanto, é preciso notar que as abreviaturas que tenham vogais ou outras letras terminais em expoente juntam s a essa terminação em expoente; exemplo: n.º/número – n.os/números.

Pergunta:

Gostaria de saber a razão do acento agudo em período. A palavra seria proparoxítona se houvesse um hiato, mas ela é pronunciada com ditongo: "pe-rio-do", e não "pe-rí-o-do".

Obrigado.

Resposta:

O que nos refere é verdade do ponto de vista do uso, mas, dentro da tradição normativa, considera-se que a pronúncia correta é pe.rí.o.do, ou seja, a palavra tem quatro sílabas e um acento tónico que recai na antepenúltima sílaba. Sendo assim, trata-se de uma proparoxítona e, como tal, é necessário acento agudo.

Pergunta:

Gostaria de saber a forma correta da seguinte expressão: «de uma ponta a outra», ou «de uma ponta à outra»?

Obrigado.

Resposta:

É mais comum «de uma ponta à outra». No entanto, é difícil decidir qual é a grafia mais correta, porque, no discurso normal, as duas sequências são homófonas (têm a mesma fonética), ambas soando como «dumapontàôtra». Do ponto de vista semântico, as duas sequências podem afigurar-se legítimas na escrita: «de uma ponta a outra» tem a sem acento, seguindo uma expressão semanticamente equivalente, «de ponta a ponta» (e não «de ponta à ponta»); «de uma ponta à outra» exibe à (contração da preposição a com o artigo definido a – crase, como é vulgar no Brasil), evocando «de uma ponta até à outra», que,-pela intuição que advém da experiência do uso linguístico, não costuma ocorrer na variante «de uma ponta até "a" outra» (embora não pareça impossível «de uma ponta até outra», sem a preposição a). Em suma, as duas grafias são defensáveis. No entanto, a expressão que apresenta à tem o favor do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; noutras fontes, não a encontro atestada, assim como não acho a forma alternativa, com a sem acento. Apesar de tudo, sugiro que «de uma ponta à outra» é a forma mais corrente de escrever a expressão, o que me leva a recomendá-la.