Pergunta:
Antes de tudo, meus parabéns ao website pelas excelentes contribuições no que diz respeito aos usos da língua portuguesa. Sei que já houve publicações, no Ciberdúvidas, do assunto de que trataremos, mas, dado o uso cada vez mais amplo da expressão em pauta, gostaria de relançar a questão.
Em vários meios, sobretudo na imprensa e também em textos de ONG, vem sendo empregada, há um significativo tempo, a expressão «crise humanitária» (p.ex.: «Agrava-se a crise humanitária de refugiados na Europa»), com a acepção de uma situação de grande emergência, na qual se acha em perigo a vida de grande número de pessoas, de modo que se torna necessária a mobilização, por vezes extraordinária, de recursos de ajuda. Dicionários e os usos originais registrados do adjetivo humanitário, por sua vez, se referem a ações positivas em relação ao homem, em seu favor (o Houaiss, p.ex., numa de suas acepções para esse adjetivo, traz: «que ou aquele que se dedica a promover o bem-estar do homem e o avanço das reformas sociais; filantropo»). O Dicionário Caldas Aulete on-line, na acepção 2 da entrada confim, traz, por lapso ou não, a seguinte citação de um website como exemplo de uso do verbete, sendo que aí aparece a expressão de que estamos tratando: «As minorias étnicas birmanesas deslocadas no confim com a Tailândia estão vivendo uma grave crise humanitária.» (portasabertas.org.br, 'Direitos humanos violados e expulsão das minorias étnicas', 20/12/2004).
Considerando a semântica original de humanitário, muitos têm desaconselhado ou condenado a expressão «crise humanitária», visto não se tratar de crise em prol do ser humano. Por outro lado, o uso e o reuso têm difundido largamente a expressão, como se pode constar numa visita a jornais imp...
Resposta:
Sobre o uso de humanitário, e em acréscimo ao que já aqui (muito) se escreveu (ver Textos Relacionados), temos de distinguir duas perspetivas:
1. Do ponto de vista descritivo, é nosso dever registar que o adjetivo tem estado sujeito a um processo de alteração semântica, que reflete a própria deriva semântica de humanitarian em inglês, ou de humanitario, em espanhol. Disso mesmo damos conta no artigo "Porque é incorreta a expressão 'crise humanitária". É possível que, dentro de algum tempo, seja a vez de o português normativo aceitar tal (dis)torção da semântica original do adjetivo.
2. Contudo, no plano dos juízos normativos, a posição do Ciberdúvidas vai no sentido de defender a semântica original da palavra e, portanto, rejeitar expressões como «tragédia humanitária», «crise humanitária» e «caos humanitário». Assim, recomendamos que, na língua culta, não se empreguem tais expressões, considerando nós que «crise humana» ou «tragédia» humana são associações adequadas e corretas.
Não obstante a posição tomada pelo Ciberdúvidas, sabemos que, quando se fala de norma-padrão, se deve também ter em atenção o uso e a pressão social associada (por exemplo, o latim evoluiu para o português, numa época em que as condições históricas favoreceram mais a imposição do uso concreto do que a sua vigilância). Se o uso do adjetivo em apreço se generalizar em contextos como os mencionados, contrariando o juízo que nos leva a condená-lo, será mais um caso, entre muitos na nossa língua, do uso sobrelevar o sentido original da palavra, como são os casos de despoletar ou