Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A respeito das perguntas Os ditongos 'ou' e 'oi' e Ouro e oiro,  ser-vos-ia possível aprofundarem (há fontes?) essa «pronúncia particular dos judeus»? Neste contexto, que validade científica têm as palavras do gramático:

«Em quanto á substituição de i por u; v. g. em dois, oiro, por dous, ouro, ou coisa, loiro, por cousa, louro, não ha razão para preferir o u, visto ser o i conforme á pronunciação moderna, e existir no latim a substituição inversa, sendo constante que os antigos Romanos escrevião optumus, maxumus, antes de terem escripto optimus, maximus. Alem do que, muitas das palavras que os nossos antigos escrevião por ou, e que hoje se pronuncião geralmente oi, já estão mui torcidas dos radicaes latinos; v. g. ouro de aurum, louro de laurus, dous de duo.

Cousa não deriva immediatamente do latim. He pois licito escrever cousa ou coisa, dous ou dois, etc. Em muitas palavras oi corresponde melhor ao radical latino; v. g. coiro de corium, por transposição de letras.»

Francisco Solano Constancio (1831), Grammatica analytica da lingua portugueza, pp. 237-238.

Resposta:

A troca de ou por oi – ou, por outra, em transcrição fonética, a troca de [ow] por [oj] – tem sido efetivamente atribuída à influência do falar da antiga comunidade judaica em Portugal. Por exemplo, é um dos traços mais característicos das personagens que representam os Judeus nas peças do dramaturgo português Gil Vicente (c. 1465-c. 1536). Contudo, Paul Teyssier, em A Língua de Gil Vicente (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, págs. 235-268), registando embora essa permuta como traço caracterizador dos Judeus, enquanto personagens do teatro vicentino, considera que não foi este grupo o difusor dessa inovação fonética (mantém-se a grafia da obra consultada):

«O "oi dos Judeus" é [...] a primeira manifestação de uma tendência muito geral que se encontra em seguida em alguns falares regionais e, em menor grau, na própria língua comum. Esta tendência geral é, por seu lado, um caso particular de um fenómeno fonético ainda mais geral que consiste em transformar os ditongos com -u em ditongos com -i, cf. multu- > muito. [...] [O] fenómeno ou > oi de que os Judeus nos fornecem o mais antigo testemunho é mais poderoso e geral. Trata-se de uma verdadeira vaga de fundo que, a pouco e pouco, vai alcançar toda a língua. Sob o ponto de vista fonético, ou > oi [...] é uma diferenciação. No ditongo ou, o elemento vocálico inicial e o elemento vocálico final estão extremamente próximos um do outro e tendem portanto a aproximar-se ainda mais por assimilação e a fundir-se numa vogal única (o fechado). Hoje, é este o ponto de chegada normal de ou, em toda a metade sul de Portugal e no Brasil. A diferenciação ou > oi é um modo de lutar contra esta tendência, um modo de salvar o ditongo. Consiste, de facto, em s...

Pergunta:

Devo dizer: «meu amigo apresentou-me-lhe», ou antes «meu amigo apresentou-me a ele»?

Resposta:

Deve dizer/escrever «o meu amigo apresentou-me a ele».

A ocorrência das formas átonas de complemento direto me, te, nos e vos é incompatível com a posposição de outras formas átonas, conforme observam Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984, p. 309). É, portanto, necessário usar as formas preposicionadas do complemento indireto depois dos referidos pronomes átonos quando estes têm a função de complemento direto. Não confundir este caso com o uso das mesmas formas, mas com função sintática diferente, a de complemento indireto; neste caso, é possível associá-las com pronomes de complemento direto: «apresentou-me/te/nos/vos a namorada» → «apresentou-ma/ta/no-la/vo-la».

Pergunta:

Os vocábulos bipartidismo e bipartidarismo, que vejo serem usados na imprensa quase indiferentemente, são mesmo sinónimos, ou designam conceitos diferentes?

Resposta:

Os dicionários consultados não chegam a acordo quanto a bipartidarismo e bipartidismo serem sinónimos ou não.

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista as duas palavras como sinónimos, atribuindo-lhes um significado comum: «organização da vida política de um Estado em função de dois partidos ou de duas coligações de partidos que alternam no Poder. Definição semelhante oferece o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, que acolhe apenas bipartidarismo: «situação política de um Estado onde só existem ou só têm importância dois partidos políticos» (ver também o Dicionário Houaiss). Contudo, o dicionário da Porto Editora (disponível na Infopédia) faz distinção: bipartidismo é uma «forma de governo caracterizada pela associação de dois partidos»; e bipartidarismo é um «sistema que se caracteriza pela relevância de dois partidos». Ou seja, no dicionário da Porto Editora, parece aplicar-se bipartidismo a um governo de coligação, enquanto bipartidarismo se refere à alternância de dois partidos no governo (quando um está no executivo, não está o outro). Na comunicação social, há oscilações, mas não parece haver clara destrinça entre as palavras, pelo que se pode dizer que são mesmo empregadas como sinónimos (consultar o blogue O Linguagista).

Note-se que as formas sem o sufixo bi- partidarismo e partidismo – estão registadas com a mesma aceção, por exemplo, no Grande Dicionário da L...

Pergunta:

Qual a forma correta para designar o penteado: "rabo-de-cavalo", ou "rabo de cavalo"?

Resposta:

Com a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, a palavra escreve-se atualmente sem hífenes, se se referir a um penteado («rabo de cavalo»), mas emprega-se rabo-de-cavalo, para designar diferentes espécies botânicas (ver Infopédia). Antes da nova ortografia, deveria escrever-se com hífenes (rabo-de-cavalo), mas é preciso notar que, em Portugal, a palavra não está atestada nos vocabulários ortográficos mais antigos (refiro-me ao de 1940 e ao de Rebelo Gonçalves, publicado em 1966). Um vocabulário ortográfico mais tardio, o de José Pedro Machado, e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001) acolhem a forma rabo-de-cavalo, como designação quer de um penteado quer de uma planta. Mas trata-se de fontes anteriores à aplicação do novo acordo.

Pergunta:

Após ter consultado vários dicionários (e verificado se haveria alguma resposta à minha questão no Ciberdúvidas), persiste a dúvida. O termo amálgama aparece, em vários dicionários, como tendo dois géneros (já em francês é masculino.) Contudo, em nenhum consegui perceber em que casos se aplica um género ou outro. Confrontei-me com esta dúvida ao ler um artigo de 1939 que refere que «A chamada literatura feminina [...] é no seu conjunto um amálgama de banalidades romantizadas.»

Resposta:

O uso mais antigo da palavra amálgama atribui-lhe o género masculino, o que significa que, de um ponto de vista normativo mais conservador, se pode considerar que o emprego correto é «o amálgama». No entanto, atualmente, aceita-se o emprego da palavra no feminino e pode até dizer-se que esta tendência se expandiu, de tal modo, que hoje amálgama é substantivo que ocorre corretamente quer no género masculino quer no género feminino. Aliás, os dicionários consultados, portugueses e brasileiros, atribuem-lhe os dois géneros, sem indicação de haver contraste semântico entre ambos os usos (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, dicionário da Porto Editora, Dicionário Aurélio, Dicionário Houaiss).

Ainda a propósito de amálgama como substantivo do género masculino, observe-se que é mais frequente este uso em textos do século XIX e da primeira metade do século XX. Com efeito, no Corpus do Português amálgama conta 42 ocorrências com género identificado, ficando o feminino em minoria com 18 ocorrências. Pela análise destes dados, não é possível distinguir contraste semântico entre o uso no masculino e o uso no feminino.

Acrescente-se que, em 1940, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa registava a palavra apenas no género feminino. Mas tarde, nos finais dos anos 50 do século passado, um gramático normativista, Vasco Botelho de Amaral, no seu Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, continuava a condenar a atribuição do género feminino a amálgama: «Esta palavra no grego (malagata) é masculina. É erro, pois, escrever ou dizer-se: a amálgama. Correto: o amálgama.