Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da expressão «ter uma língua de prata».

Obrigada.

Resposta:

É expressão que se refere a uma pessoa muito maldizente, conforme o registo de António Nogueira Santos, em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006). «Língua de prata», com a variante «linguinha de prata», também tem entrada, com o mesmo significado, no Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Editorial Notícias, 2000), de Orlando Neves, e no Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993), de Guilherme Augusto Simões.

Pergunta:

Gostaria de saber se as palavras cinema, teatro, pintura, escultura ou literatura podem ser consideradas merónimos de arte, se a relação existente entre os conceitos é de hiponímia/hiperonímia ou se ambas as situações são consideradas aceitáveis, uma vez que, na minha opinião, a linha de diferenciação desta relação lexical é muito ténue.

Obrigado!

Resposta:

Os conceitos de hiperonímia e hiponímia são os que se aplicam melhor à relação de arte com cinema, teatro, pintura, escultura ou literatura. Neste caso, não se trata de relações de todo-parte (holonímia-meronímia), porque estas, ao contrário das de hiperonímia-hiponímia (ou seja, de hierarquia), impedem a transmissão de propriedades semânticas da palavra semanticamente mais abrangente. Por exemplo, tampo ou perna (merónimos) referem partes de um todo a que se chama mesa (holónimo) sem serem subtipos deste todo. Contudo, se empregarmos cinema, a realidade em referência é um subtipo daquilo que o vocábulo arte designa.

Este comportamento é focado no Dicionário Terminológico, que define assim a relação de holonímia:

«As relações de holonímia/meronímia distinguem-se das de hiperonímia/hiponímia na medida em que nestas há uma transferência de propriedades semânticas que não se verifica naquelas. Por exemplo, "sardinha" é hipónimo de "peixe", porque também é "peixe". Já a palavra "escama" não pode ser encarada como um hipónimo de "peixe", uma vez que, apesar de ser uma parte do peixe (merónimo), não é um subtipo de peixe.»

Pergunta:

Em linguagem técnica inglesa encontra-se frequentemente o termo software library (ou tão-só library quando o mesmo contexto é óbvio) para designar uma coleção/catálogo de códigos de programas computacionais disponibilizados a utentes interessados. As traduções mais usuais são as de «biblioteca de programas», «biblioteca informática», ou simplesmente biblioteca, todas elas assentes em vocábulo que etimologicamente respeita a livros (pelo prefixo biblio-) e, por isso, sujeitas a crítica. Para ladear esta questão, será que é aceitável defender-se o uso do termo "programoteca", já existente em catalão? Ou será preferível optar-se por "programateca"?

Resposta:

É efetivamente desejável encontrar forma portuguesa ou forma mais enraizada na tradição morfológica do português em alternativa aos anglicismos. Também se entende que «biblioteca de programas», «biblioteca informática» e biblioteca acabem por ser soluções insatisfatórias, por afetarem a coerência semântico-referencial que os vocábulos envolvidos têm habitualmente em português. No entanto, mais difícil se revela dar uma resposta inequívoca sobre a preferência a dar a uma das formas em questão, programoteca e programateca.

A forma catalã, que é também a do espanhol, exibe uma vogal de ligação o, que, como em português, é a que costuma ocorrer em compostos científicos e eruditos formados por elementos de origem grega ou que são híbridos greco-latinos (por exemplo, em português, filmoteca, constituído por film(e) + o + teca – cf. Dicionário Houaiss). Mesmo um composto que envolva um primeiro elemento acabado em -a, como mapa, tem essa vogal final apagada, para poder inserir-se a vogal de ligação o: mapoteca. Sendo assim, parece-me legítimo que, seguindo o modelo catalão e espanhol, também se forme programoteca.

Apesar do que disse, há que ter em conta a existência de cinemateca, que, resultando da adaptação direta do francês cinémathèque, formado por cinèma e thèque (cognato do nosso teca), permite aceitar programateca, forma que associa programa a -teca, sem rec...

Pergunta:

Ouvi hoje um termo que já não ouvia há muito tempo: «arramar» com o significado de  «parar de chover»!

Ligeirinho, procurei  na net alguma informação  e não encontrei  qualquer significado que se aplicasse a este sentido! Podem dar-me alguma informação sobre o fundamento para este verbo ter este significado?!

Grato pela atenção, aproveito para vos felicitar pelo excelente trabalho que têm vindo a  produzir em prol da nossa língua!

​Obrigado​.

Resposta:

Encontro registado o verbo arramar com o significado de «espalhar a rama» ou, de modo mais genérico, no sentido de «dispersar-se, espalhar-se» (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa). A. M. Pires Cabral, em Língua Charra (Editora Âncora, 2013), regista, como regionalismo de Trás-os-Montes, a forma arramar com os significados de «derramar, verter (um líquido); espalhar (estrume, cinza, etc.)» e «espalhar as nuvens», ou, mais especificamente, «levar a trovoada para longe». Esta última aceção está também atestada no Tesouro do Léxico Patrimonial Galego e Português. Arramar é também conhecido nos dialetos galegos, conforme se regista no Dicionário Eletrónico Estraviz, no qual o verbo, além de significar «afastar» e «espalhar», também se usa como o mesmo que «escampar», isto é, «parar de chover».

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras finais.

Pergunta:

Na enumeração de páginas e de folhas de um livro, assim como na de casas, apartamentos, quartos de hotel, cabines de navio, poltronas de casa de diversões e equivalentes, empregam-se os cardinais. Ex.: «página sete»; «folha dez»; «cabine oito»; «casa trinta»; «apartamento cento e dois»; «quarto dezoito». Mas, se o numeral vier anteposto, usa-se o ordinal.

No Dicionário Terminológico, devo classificar «sete», «dez», «oito», «trinta», «cento e dois», «dezoito» como numeral/quantificador, ou adjetivo numeral?

Resposta:

Os casos em questão são exemplo do uso dos quantificadores numerais como adjetivos numerais.

No entanto, deve ser tido em atenção que o Dicionário Terminológico (DT) não abrange estes casos, o que se compreende, porque o DT é uma lista de termos e das suas definições, e não uma gramática. É necessário consultar, por exemplo, a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984, pág. 374), na qual Celso Cunha e Lindley Cintra se referem a este uso dos numerais cardinais – ou seja, daquilo a que o DT chama quantificadores numerais –, em lugar dos numerais ordinais – isto é, os adjetivos numerais do DT:

«Na enumeração de páginas e de folhas de um livro, assim como na de casas, apartamentos, quartos de hotel, cabines de navio, poltronas de casas de diversões e equivalentes, empregam-se os [numerais] CARDINAIS [em lugar dos numerais ordinais]. Nestes casos sente-se a omissão da palavra número:

Página 3 (três)                                Casa 31 (trinta e um)

Folha 8 (oito)                                  Apartamento 102 (cento e dois)

Cabine 2 (dois)                              &#...